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segunda-feira, 29 de março de 2021

Poema de Ana Patrícia Almeida (25/03/2013)

Quando Ana Patrícia Almeida leu o episódio de Rita na Luta, "Cansaço", lembrou-se de um poema que havia escrito há 8 anos atrás. Compartilho com vocês na esperança de incentivar esta excelente fotógrafa a cruzar mais seus caminhos também com as artes das letras. 


Lá vem o ônibus lotado

Muita gente esperando na parada

Ele está vinte minutos atrasado

A professora já estava estressada

Tem gente sentada que dormiu

'28 pessoas em pé', diz a plaquinha

Só perto de mim tem mais de mil

O ônibus desce a ladeira correndo

Queima uma parada

Suja a calçada

Que a mulher estava varrendo

No fim da ladeira tem um sinal

Do meu lado tem um homem

Fedendo mais que bacalhau

O ônibus para de repente

Quem estava dormindo acordou

Batendo o dente no banco da frente

Quem estava em pé não se segurou

Caiu empregada, doutor e militante

O motorista nada notou

Tinha bastante espaço na frente do volante

domingo, 28 de março de 2021

Rita na Luta - Cansaço

 Mas você está cansada de quê? A dois passageiros de distância, Rita se pôs a imaginar seus mil motivos para responder àquela pergunta que o rapaz fez à moça bem ali do lado. Sua noite mal dormida por causa da azia depois do cuscuz com leite no jantar. Suas horas extras para pagar a prestação do celular novo de Maria Clara assistir as aulas dela. O serviço que era muito na casa de Dona Laura. As varizes que ao fim dos dias doíam cada vez mais em suas pernas e ela não podia nem sentar naquele ônibus lotado.

Estou cansada das suas brigas, do seu ciúme, de você não querer deixar eu fazer as minhas coisas. Estou cansada de você, Eugênio. Os olhos de Rita se encontraram com os de algumas outras pessoas que estavam ali perto do casal em crise. Os muitos passageiros que ouviam a conversa partilhavam expressões de assombro ou divertimento enquanto Eugênio continuava com o braço enlaçado na cintura da moça como se aquilo tudo não fosse com ele.

Calma, neném. Não me chame assim, já disse mil vezes. Ah é, e por acaso ele não te chamava de nenhum apelido carinhoso, hein? Está vendo só, Eugênio, é disso que estou falando; eu vou-me embora. A moça foi abrindo caminho entre os colegas da condução e Eugênio gritando que aquela não era nem a parada dela, que o motorista não abrisse a porta porque tinha uma mulher louca querendo descer fora do ponto, que ela ia se perder e podia ser atropelada, e nisso a moça já descia correndo as escadas do ônibus em direção à rua.

Cinco segundos de silêncio no lotação. Depois disso, foi o homem chorando alto com as mãos no rosto e o falatório generalizado, os mais de parto explicando aos de trás o que tinham visto e enfeitando a história de mil modos. Que a mulher não gostou do cara tê-la chamado de neném e foi-se embora; que um tal de Efigênio tinha levado um chifre daquela moça que saiu correndo; que um passageiro estava batendo na mulher mas ela conseguiu fugir e uma hora dessas deveria estar na delegacia com a Maria da Penha; que havia uma mulher louca no ônibus que fugiu correndo do irmão.

Rita, que era da turma dos mais perto e assistira a tudo com a maior atenção, não quis se meter. Não confirmava nem desmentia nada, concentrada em seus pensamentos. Sujeitinho esquisito, o tal do Eugênio. Não era à toa que a moça havia se cansado. Ficou lá gritando depois chorando, a maior cena, mas parado feito poste. Porque não foi atrás dela? Vai ver teve uma livrança deixando esse daí para trás. Agora, isso era lá conversa de se ter em ônibus? Ela que nunca ia se passar para isso, expor suas intimidades na frente de todo mundo daquele jeito. Já estava mais do que na hora de vagar um assento para ela, que as varizes hoje estavam demais.

(Imagem retirada de https://amorcronico.wordpress.com/2016/04/18/briga-de-casal/)

sábado, 13 de março de 2021

RITA NA LUTA - Mulheres

 


Rita cochilava em pé, o rosto apoiado no braço levantado que unia a mão firme à barra de segurança do ônibus. Sonhava aos pedaços no sacolejo da viagem, interrompida vez ou outra pela atenção à bolsa velha sufocada debaixo do outro braço.

Nessa vigília sonolenta já passava da metade do caminho quando a conversa de duas moças a despertou. “Eu ainda não entendi, me explique de novo”, perguntava impaciente a que ia em pé, bem ao lado de Rita, mãos apoiadas nas ferragens ao redor do banco em que a amiga ia sentada. Conhecia bem o tipo, dessas pessoas folgadas que se espalham na condução ocupando lugares onde várias outras poderiam se segurar. A outra passou a repetir a história, agora em volume mais alto, e Rita desperta pôde reconhecer o enredo de um de seus quase-sonhos nos cochilos interrompidos instantes atrás: “Ele apareceu lá em casa com uma barra de chocolate e uma flor, todo meloso, dando os parabéns pelo dia das mulheres”. “E o que tem de errado?”, indagava a amiga, e Rita agora também queria saber.

A moça lamentava que nos dias de hoje os homens ainda parabenizassem as mulheres no dia oito de março, quando este era um dia de protesto feito para ir a passeatas e gritar contra as tantas coisas ruins que ainda aconteciam nesse mundo, o tanto que apanhavam e ganhavam salários menores que os dos homens etecetera e coisa e tal, por isso ela sabia que não ia dar certo com o tal do Marcelino. Se ela havia devolvido a flor e o chocolate, quis saber a outra, que, de tão intrigada, havia levado uma das mãos ao queixo e assim liberado um dos apoios, prontamente ocupado por Rita. Não, não havia. A flor estava murchando num vaso e o resto do chocolate ainda estava ali guardado dentro da bolsa, se ela quisesse um pedaço. “Está servida também, senhora?”

Rita agradeceu e recusou, fingindo desinteresse na conversa. As meninas desceram em frente à faculdade. Sentada, retomou seus cochilos. Sonhou com Sandro Valério, o galã da novela, em frente ao seu portão com as mãos para trás. De repente, surge diante dela um buquê de rosas vermelhas e logo em seguida uma caixa de bombons de chocolate. O galã a toma em seus braços para um beijo apaixonado. Bem na hora em que o cobrador a acorda, já no fim de linha.

* Imagem retirada do site https://www.uniflores.com.br/ramalhete-de-rosas-com-bombons



domingo, 7 de março de 2021

Antes do perfume



Ana Lia Almeida

Texto publicado em março de 2010 no Jornal O Contraponto


As perfumarias anunciam, com suas promoções, que o dia da mulher está chegando. Que bom! É o dia em que muitos se esquecem de que somos vendidas o tempo todo como produtos e se esforçam em vender produtos para nós.

Estão lá na novela e no programa do domingo, as moças bonitas que levantam a audiência com seus corpos nus. Estão também na propaganda da cerveja, tentando nos exigir que bebamos à vontade sem ter nenhuma barriguinha. Já as com cara de certinha estão vendendo cuscuz e máquinas de lavar roupa, ótimas donas de casa. Todas absolutamente transformadas em coisas, assujeitadas.

Os produtores e consumidores destas mulheres negam a história do oito de março. Há cento e cinqüenta e três anos atrás, operárias americanas da indústria têxtil organizaram uma paralisação exigindo redução da jornada de trabalho de dezesseis para dez horas. Resultado: morreram carbonizadas por seus patrões, que simplesmente fecharam a fábrica e atearam fogo, em represália aos protestos.

Em reconhecimento à luta contra a opressão que estas mulheres vivenciavam, e que nós ainda vivenciamos em todas as esferas da vida além da do trabalho, foi criado o Dia Internacional da Mulher. Não é um dia bonitinho, feito para se ganhar um perfume. É uma data de muita luta, ainda que essa perspectiva às vezes pareça distante.

Isso porque a condição de ser feminista não é tão natural quanto a condição de ser mulher. Exige a percepção das relações desiguais e injustas travadas entre homens e mulheres, e a vontade de construir outra história. Sou feminista porque desde criança lembro de me indignar com a divisão das tarefas domésticas. Porque sou solidária com as mulheres violentadas pelos homens de sua família. Porque tenho uma filha a quem ensinarei a ser feminista também. Sou feminista porque quero um mundo melhor e tenho “a estranha mania de ter fé na vida”.

Antes das flores, do perfume ou do presente qualquer que você receba ou dê nesse próximo oito de março, pense no significado político desse dia. Pense nas suas relações dentro de casa, em que medida você anda lavando os pratos e decidindo os rumos da sua família. Pense no seu trabalho, como as mulheres são tratadas e que cargos ocupam. Pense no esforço quase sobre-humano de ser mãe, e como  as funções que esse papel acarreta podem ser compartilhadas.

            Só então passe o seu melhor perfume, companheira, e vá para a rua protestar por um mundo com igualdade de gênero.


Foto de Rovena Rosa, arquivo Agência Brasil (https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-03/dia-internacional-da-mulher-tera-greve-feminina-em-diversos-paises)

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...