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sábado, 23 de janeiro de 2021

CURTINHA DA QUARENTENA N°40 - Carnaval


Os clarins anunciam a chegada da vacina. Com ela, o próprio Carnaval. Não o cancelado, deste fevereiro, mas a sua essência, a vida pulsante que ele carrega debaixo das sombrinhas de frevo. Ouço de longe o baque solto dos maracatus. Minhas mãos já se dão em ciranda.


"Você vai mesmo se vacinar, moça?". Estarrecida, quase não compreendo a dúvida.


Quero a vacina como quero a vida com suas prévias, sua apoteose, suas quartas-feiras de cinza. A vida desembestada que nem um dragão vermelho cuspindo labaredas, um elefante virado na folia, um calunga dançando à meia-noite. 


Porque a vida, meu bem, é feito o Carnaval. Ela tem todo ano, mas é curta. Um tal de sobe e desce ladeira, num instante acaba.


Vou tomar, sim. Mal posso esperar por essa injeção de vida. Os clarins já anunciam.   

sábado, 16 de janeiro de 2021

CURTINHA DA QUARENTENA Nº 39 - Motoboy

Estou de máscara, sim, senhor, pode abrir o portão. Veio errado, o sabor? Peço desculpas, senhor, pode entrar em contato com o estabelecimento para mandarem outra de quatro queijos. Infelizmente não posso, tem de ser o próprio cliente, pelo aplicativo. Sinto muito, mas meu trabalho é só a entrega, mesmo. Entendo. Espero, sim.

Senhor? E aí, disseram alguma coisa? É que ainda tenho outras três entregas. O senhor sabe, quando atrasa já vão logo avaliando o motoboy, dá problema pra mim. O pessoal não quer comer pizza fria, também. Mas não posso fazer nada, senhor. Reclame que mandam outra, já disse. Posso levar essa de volta, se o senhor quiser, mas geralmente a outra vem de cortesia. Não adianta o senhor ficar me segurando aqui, não faz diferença para a sua reclamação. Ligue, reclame, e espere a sua pizza de quatro queijos. Eu estou calmo, mas tenho de trabalhar. Não tenho a sorte de descansar sábado à noite, pedindo pizza pelo celular. Tenho um monte de corrida, ainda, pra botar comida em casa. Não estou bravo, senhor, só preciso ir embora.

Atendeu? Está certo, eu falo. Alô, Dona Janete? Eu vim aqui fazer a entrega, o cliente não quis receber porque veio errado, frango com catupiry, quando o pedido foi quatro queijos. Eu disse a ele, já, que a senhora mandava outra, mas insistiu pra eu falar, está me segurando aqui, eu cheio de entrega. Já começaram a reclamar, não foi? Pode deixar que eu corro, sim, Dona Janete, é bem pertinho daqui, cinco minutos no máximo chego lá com a pizza deles. Não se preocupe, até mais.

Satisfeito, agora? Não entendi. Devolver o seu dinheiro? Aí o senhor liga de novo e resolve com a pizzaria. Eu? Mas era só o que me faltava, olhe, tenha uma boa noite e boa sorte com sua próxima pizza ou com a devolução do seu dinheiro, como quiser. Por favor me solte, não me faça perder a cabeça. Como é? Repita, se for homem. O senhor vai ver quem é o macaco. Tome, seu imbecil. Eu avisei, não foi? Coma uma fatiazinha de frango com catupiry, que passa. Fui.

Diga, Dona Janete. Já estou aqui na frente, esperando o cliente vir receber. O que? Descontar da minha corrida?


domingo, 10 de janeiro de 2021

CURTINHA DA QUARENTENA Nº 38 - Realidade

Lá em casa pegou todos os três. Não precisou de hospital, não, graças a Deus. Curou com chá de alho e limão, mesmo, porque os remédios, minha filha... Lá no postinho não tinha mais, aí eu nem procurei saber na farmácia. Remédio é pra quem pode, né? A gente fica no chá, mesmo. Parada eu fiquei só uma semana, depois a patroa me mandou logo botar a máscara e voltar pra faxina. Esse pessoal não sabe, né, pegar numa vassoura, lavar um banheiro, botar um feijão no fogo. Eles não ficam, não, sem gente em casa, até copo d´água querem na mão. 

Com Manoel, foi mais grave. Passou quinze dias em casa, eu cuidando, e quase bateu no hospital. Começou um cansaço, uma chiadeira no peito, uma agonia! Dei chá de hortelã miúdo, foi acalmando, acalmando, e ficou bom. Mas a obra não pára, né?! Deu quinze dias, ele voltou para o trabalho, curado. 

A menina Clarinha não teve nada, mas ficou positiva também. O trabalho foi ela querer ficar em casa, pra cima e pra baixo. "Assintomátchica", dizia que era, toda importante. Mas não pode não, disseram no postinho, passa a doença do mesmo jeito. Dava conselho, mas era de uma festa para outra. Só parou mais quando a vizinha morreu, quase da idade dela. Morre mesmo, viu! A bichinha passou cinco dias ardendo de febre, quando levaram para o hospital já era tarde. 

Gripezinha nada, eu vi como foi aqui. Até hoje é um cansaço, não sabe, uma boca seca, eu ainda não me recuperei totalmente não. Faltou o repouso devido, a madame inventando isso e aquilo, que ia chegar visita. 

Não entendo esse povo, tem tudo pra ficar quieto, isolado, e é andando em casa dos outros. Sei não, viu... uma coisa é a gente, que trabalha fora, mesmo, senão não come. Mas esse povo?! Tudo em romeófici, bem chique, como eles enchem a boca pra dizer, e em vez de ficar parado se dana para o meio do mundo, lotando praia, comprando em shopping. Eu mesma, nem que tivesse dinheiro. O tempo não está pra isso não, minha filha. E parece que as coisas vão piorar de novo, não é?     

domingo, 3 de janeiro de 2021

CURTINHA DA QUARENTENA N°37 - Escapamos

Finalmente escapamos do ano passado. Ele, uma estrada sinuosa de chão batido na descida de um precipício. Nós, um treminhão cargueiro desses que se vê cheio de cana nos caminhos da Zona da mata. Cai-não-cai,  atravessamos os buracos dos dias, morremos de medo nas curvas do tempo e enfim sobrevivemos ladeira abaixo nesses doze meses sombrios. 

Uma breve retrospectiva começaria, como todo ano, no Carnaval, com a vaga notícia de um problema longínquo talvez se aproximando de nós. A Páscoa já nós alcançaria de portas fechadas, trancados em casa. Milhares de mães e filhos faltando no dia das mães. São João sem fogueira nem gente dançando a quadrilha, sem sanfona nem forró. Chegada a primavera, resolvemos todos sair junto com o sol em busca das flores e o tempo fechou novamente. Humanidade remota, aglomerada em torno da indiferença pela tragédia em curso. Perdas e mais perdas. Assim passamos pelo Natal e chegamos ao Ano-novo, ansiosos pelo fim desse caminho sinuoso que foi o ano de 2020.

O ano acabou, é verdade, e aos poucos se aproxima o ponto de onde, vacinados, cada um retomará o seu destino.  Mas ainda falta um bocadinho de chão para terminar a estrada da pandemia. Exaustos, parece que estamos como quem vem chegando de viagem e vai logo tirando o cinto de segurança antes mesmo de entrar na rua de casa. Atenção, curvas ainda perigosas. 

Lançamento de "Travessia": uma novela de Ana Lia Almeida

  Com muita alegria convido a todas e todos para o lançamento presencial do meu novo livro "Travessia", dia 10/09/22 às 17h no Bri...