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domingo, 21 de novembro de 2021

RITA NA LUTA - Enchente

 

 

Tão cedo da manhã, o sol já era o de meio dia. A cidade inteira, um imenso cuscuz abafado. Rita fervia dentro do ônibus, indo para a casa de D. Laura, mas pelo menos vinha sentada, no lado do corredor. O passageiro ao seu lado instalou-se em frente à janela, barrando todo o vento que já era pouco, até mesmo porque o buzú mais parava que andava, engasgado no engarrafamento de todos os dias. Quando pegava um sinal aberto e uma faixa livre, o vento corria e a alegria era grande. Mas durava pouco. Logo em seguida, parava de novo, e tinha gente a ponto de desmaiar de calor. 


Alguém chamou o nome de Rita, duas fileiras atrás. Era Taci, sua vizinha, guardando o lugar que acabara de vagar. Por sorte o rapaz de pé em frente ao banco respeitou, cedendo o assento à jovem senhora que rapidamente se deslocou até lá. Menina, que calor é esse, Rita já chegou reclamando, deixa eu sentar nessa janela um pouquinho pelo amor de Deus. 


Logo cedo já está desse jeito, hein, Rita? Desde que eu moro aqui nunca tinha passado tanta quentura, tô achando que tá mais quente esse ano, não está? Rita fez que sim, com a cabeça, se abanando. E pouco choveu no meio do ano, não foi? Época de São João, que está sempre chovendo, foi quase seco, esse ano está doido.  Olhe, eu não sei o que é pior: época de chuva ou esse calorão todo. Vida de pobre é sofrida de todo jeito, andando no sol quente ou debaixo do aguaceiro. Não vê esse povo de carro aí embaixo, ar-condicionado no máximo, quando chove, também, não faz nem diferença pra eles. 


Logo que eu cheguei de Jaboatão, sabe, Rita, eu fui morar numa vila que tem perto do Rio Jaguaribe. É São Rafael, ali, uma casinha bem pequenininha, que dava para a ponte. Teve uma vez que choveu dois dias seguidos sem parar, enchente braba, e o Rio teve uma cheia. Quebrou até a ponte. A água entrou em casa e levou tudo: sofá, televisão, armário de cozinha, a geladeira novinha que eu tinha acabado de comprar, tudo, tudo que eu tinha. Sobrou só as coisinhas do meu quarto. Uma tristeza, perder tudo que você tem de uma hora para a outra. 


Mas a gente tá sempre dando a volta por cima, né, Taci? A vida não roda, não, ela capota. Um dia esse pessoal tá no bem bom, no friozinho desses carros chiques, dinheiro que não tem nem onde gastar. Dando tudo fácil pra esses meninos aí, ó, que não sabem nem atravessar uma rua. No outro dia, não estão mais aqui e fica o povo todinho brigando por herança. Desse jeito. Melhor viver a vida simples, mesmo que passe mais calor. Vai descer na próxima, não é? Cuida.


Foto: Daniel Búrigo, A Tribuna https://www.4oito.com.br/noticia/o-calor-que-se-passa-nos-onibus-10221

domingo, 7 de novembro de 2021

RITA NA LUTA - Poeira de obra



 Lá vinha Rita em pé, voltando do trabalho no ônibus lotado. Parecia que se adivinhava, os dias em que ela estava mais cansada, com as varizes mais lhe doendo as pernas, era quando o buzú vinha sem lugar nenhum pra sentar. Mesmo assim, Rita tentava cochilar no meio dos saculejos do trânsito, a cabeça encostada no braço levantado segurando na barra de apoio. Era um sono teimoso, meio aperreado, a pessoa toda hora despertando com medo de dormir de verdade e terminar desequilibrando ou então perder a parada. Foi quando começaram a espirrar ao seu lado, acordando Rita de vez.


Vá desculpando, senhora, não é covid não, viu? É a poeira lá em casa, vivo assim, espirrando, por causa de uma obra, não sabe, a reforma de um quartinho lá pra o meu menino vir morar comigo mais a esposa. A vida tá difícil, vou dar essa força para eles saírem do aluguel até as coisas melhorarem. É, minha filha, se Deus quiser, vai melhorar, sim, a gente tem de confiar nos planos D´Ele. Esse quartinho, mesmo, tantas vezes eu quis derrubar, sabe, para ver se aparecia mais um ventinho lá em casa, fazer uma área pra botar uma cadeira de balanço, umas plantas, mas nunca dava certo. Era esse plano de abrigar meu menino que já estava traçado, aguardando. Apareceu um dinheiro atrasado, das minhas férias, na hora certa, veja você. Foi pouquinha coisa pra ajeitar, só abrir uma janela, mesmo, e refazer o reboco das paredes, por causa da infiltração. Mas qualquer coisinha é gasto e poeira, né não?


Era mesmo, Rita sabia bem. Quando comprou a casinha dela, foi do mesmo jeito, tudo caindo aos pedaços, precisando arrumar. Parecia pouca coisa, mas nunca é. Seu Zeca, o pedreiro, prometeu aprontar em quinze dias. Foi para três meses. Quando o ajudante do pedreiro adoeceu, ela mesma cuidou da amarração dos tijolos junto com Seu Zeca. Aprumava o fio e assentava certinho, uma fileira sobre a outra, entrecruzada, finalizando com a massa de cimento e areia. Ela levava jeito e até gostava daquilo. Era melhor que trabalhar em casa de família, pena que não tinha muita chance, sendo mulher, de trocar um serviço pelo outro. O ruim era só o pó, mesmo, e os gastos, claro. Conforme a poeira ia subindo, o dinheiro ia se acabando. Rita já estava pensando em desistir de tudo, abandonar a obra e voltar para a casa da avó. Foi quando resolveu fazer o empréstimo e terminou dando tudo certo, depois de muito aperreio. 


Atchin. Aaaaaaatchin. Ai minha nossa Senhora, me traga saúde e o fim dessa reforma. Amém. Dê licença aí para eu descer _ Rita se espremeu mais um pouquinho para a mulher passar. Atchin. Vão desculpando, minha gente_ ela se explicava a todo mundo no ônibus _ não é covid não, é só poeira de obra, mesmo. 


Foto: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/obras-do-taonel-de-macrodrenagem-interditam-trecho-da-br-226-no-bom-pastor/468052

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...