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domingo, 27 de setembro de 2020

A melhor hora da praia

Arrumou-se toda feliz, a canga combinando com o biquíni, o chapéu bem assentado da mesma cor dos óculos escuros, as cadeirinhas de praia empoeiradas debaixo de um braço e o outro ocupado com a esteira. Três cervejas e uma garrafa de água de côco dentro do isopor, iludidas pelo pouco gelo que lhes jogaram por cima. 

A melhor hora da praia. A turma toda já satisfeita de tanto sol e brisa, devidamente voltados pra casa. Com certeza acharia uma sombra debaixo da qual passaria a tarde sentada, lendo um livro em frente ao mar. A trilha sonora das ondas já embalava seus ouvidos no sonho bom da tarde de domingo.

Qual não foi o desapontamento de sequer poder descer do carro. Simplesmente não havia espaço em toda a praia. Turmas e mais turmas, a do futebol, a da farofa, a da campanha eleitoral, todo mundo igualmente merecedor de um descanso dominical. Aliás, quem já viu uma ideia dessas, achar um pedacinho vazio de paraíso no meio de sedentos da vida normal, essa ilha deserta arrodeada de álcool em gel no meio do oceano Atlântico na parte da Paraíba.

O jeito foi dar meia-volta e fazer do jardim de casa, mesmo, uma praia. Vocês já ouviram uma playlist do Spotify com os barulhos das ondas do mar?

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domingo, 20 de setembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA n.24 - Temporada de Chuvas Isoladas

Sabe quando uma sucessão de acontecimentos ruins vão nos chovendo um atrás do outro, mal a pessoa se seca e lá vem outro banho de água fria de novo? Parece que faz sol em toda a cidade, mas uma nuvem carregada não sai de cima de nós.

Pois está aberta a Temporada de Chuvas Isoladas por aqui. De Isolada, mesmo, só tem o nome, porque traz consigo a maior aglomeração. Não tem álcool em gel que dê jeito: de repente a gente se vê em velório, em delegacia e cheio de gente dentro de casa.

Primeiro veio a perda de um grande amigo. Indizíveis a tristeza e a revolta, dessas marcas que a vida vai cuidando com o tempo, bem devagarinho. Às favas com o isolamento social: foi muito abraço e pouco distância. 

Poucos dias depois, a casa pegou fogo. Uma faísca elétrica ardeu o quarto da menina e em pouco tempo havia uns quinze vizinhos sem máscara arriscando a vida por nós. Afora a fumaça, ficamos todos bem. Menos as roupinhas da dona do quarto, que queimaram todas. Em compensação, ela renovou o quarda-roupa inteiro, o que, por sua vez, nos levou ao shopping depois de 6 meses. 

No mesmo dia, podem acreditar, a minha mãe foi roubada e fizeram uma festa com os cartões de crédito. Pior que o prejuízo, só mesmo o 0800 da Caixa Econômica Federal. E lá fomos nós à Central de Polícia, onde ganhamos o chuvisco-bônus da viagem perdida, voltando sem B.O. nenhum porque, você sabe, era fim de semana e ali somente flagrante com violência. 

O desisolamento ainda continuará com o retorno à delegacia, a ida ao banco e a reforma do quarto incendiado. Mas esperamos de coração que a Temporada de Chuvas Isoladas tenha se encerrado. 


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA N. 23 - Já chega

 Vocês aí, seus Normais: ninguém aguenta mais esse mundo de vocês. Está simplesmente insuportável. De Covid ou de tristeza as pessoas estão indo embora daqui. 

Vocês, aliás, já morreram e não sabem. São todos feitos de morte: carros importados, condomínios de luxo onde ninguém mais pode entrar, restaurantes cujos pratos custam um salário inteiro. Sem contar seus golpes, mais velhos que a fome, reeditados hoje no modelo remoto. Que se exploda esse mundo de vocês! 

Já é Setembro, amarelo. Temos sol, praia, feriado, flores, passarinhos e mesmo assim não estamos suportando a sujeira e o sofrimento por todos os lados.

Nós estamos fartos, eu, meus amigos e a senhora que passa de porta em porta vendendo as empadinhas. Decidimos acabar com essa podridão e nada nos fará desistir, porque esse mundo normal de vocês já não presta faz é tempo. 


sábado, 5 de setembro de 2020

CURTINHAS DA QUARENTENA Nº 22 - Dias Iguais

O fenômeno dos Dias Iguais, embora anterior à pandemia, parece ter se intensificado ao longo do ano de 2020. Trata-se de dormir e acordar preso aos mesmos acontecimentos, que se repetem quase sem variações perceptíveis. Duvidamos do calendário, pasmos, incrédulos de ter vivenciado dois dias diferentes. Quando damos por nós, o mês acabou sem explicações, parecendo impossível que todo esse tempo de 31 dias distintos entre si tenha sem passado. 

A cozinha é a principal responsável pela estranha sensação, pois entre o café da manhã, o almoço e a janta, pouca coisa acontece de novo sobre a terra dentro de uma casa. Vejamos o caso do cuscuz: misturar um pouco d´água à massa amarela com uma pitada de sal, aguardar o descanso e deixar cozinhar por uns quinze minutos. Todo dia é o mesmo preparo, o que pode ser, logo de manhã cedo, fonte de confusão com o dia anterior.

Os jornais, com suas notícias de sempre, também em muito contribuem para a perturbação dos Dias Iguais. Variam muito pouco as péssimas notícias de um dia para o outro, embora de semana em semana tenhamos quase sempre um novo escândalo e uma nova média móvel no número de mortes, de modo que podemos passar a semana inteira praticamente presos em um dia só, considerando apenas a repetição do noticiário.

Não fosse um passarinho ou outro que aparece na janela, ora um bem-te-vi, ora um beija-flor nos lembrando que a vida segue teimosa, difícil seria acreditar que o tempo está passando de verdade.   

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...