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sábado, 26 de dezembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA Nº 36 - Cancelamento do Ano-Novo

Querem cancelar o Ano-Novo, e agora? Como é que vamos sair de 2020 sem o momento exato da meia-noite anunciado pelos fogos diante da multidão? Meu medo é que assim, sem testemunhas, o Ano-Velho queira achar que não passou, venha dizer que foi só uma meia-noitezinha qualquer, dessas de quinta para sexta, a gente foi que perdeu o sono, normal, emendando um dia noutro. Puro negacionismo, querendo driblaa passagem dos calendários. Não, isso não pode acontecer.

Precisava mais do que nunca pular aquelas sete ondas, sabe, cada onda um desejo, cada desejo um protesto contra o ano que passou. O primeiro pulo, claro, para a vacina: eu lá em 2021, num posto de saúde, oferecida, dois braços e um bumbum à primeira seringa que passar na minha frente. Pular, depois disso, para os muitos abraços e beijos nas pessoas amigas, nas conhecidas e nas desconhecidas também. Pulando para o meio da rua de volta. Pulinho na feira de Mandacaru com direito a comer tapioca sem máscara na barraca de D. Adriana. Pulão para os dias inteiros na praia, guarda-sol novo, isopor cheio de cerveja gelada, um livro e um frescobol. Um pulo para voltar a ver nascer a dúvida dos meus alunos na contração de suas testas, e perguntar, bem ao vivo, você aí, o que foi que não entendeu?

Por último, o maior salto de todos para a onda mais brincante, cheia de de espumas cintilantes dançando ciranda na beira da praia: hei de pular o Carnaval, mesmo fora de época, mesmo só paro ano; hei de me aglomerar de novo naquele imprensado, sem chances para qualquer distanciamentozinho, empurrando a pandemia ladeira baixo! "Ó o Pesado", o coronavirus passando para nunca mais.

Não vai dar certo cancelar o Reveillón. E se ficarmos presos nessa tragédia para sempre, trancafiados na frente do computador? A virada vai ter que acontecer. Tracemos um plano: um balde cheio d'água com um pouco de sal grosso. Uma playlist com o som de fogos de artifício. Roupa branca, sidra Cereser. Na hora da virada, tocar os fogos em volume máximo, ir despejando nós pés a água salgada do balde e pular até completar as sete vezes. Não esquecer dos desejos correspondentes. Estourar a sidra. Relaxar um pouco e aguardar o novo ano amanhecer.

Reparemos bem como o sol nasce todos os dias, mesmo nos mais duros tempos. Qualquer manhãzinha dessas ele nascerá de novo e as coisas estarão melhores. Que assim seja. Assim será.


domingo, 20 de dezembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA N° 35 - Papai Noel on line

"Querido Papai Noel, esse ano eu quero um monte de presentes porque fui muito boazinha. Não fui no shopping, nem na praia, nem pra canto nenhum; eu também não quero nunca mais ir pras aulas on line". 

Meu whatsapp agora está lotado de mensagens como essa. Como é que se responde a isso, meu Deus do céu? Não sei por que cargas d'água inventei de trabalhar de Papai Noel no meio da doidice dessa pandemia. 

Bem que a psicóloga disse, no curso on line da Escola de Papai Noel, que receberíamos pedidos estranhos e tínhamos de estar preparados para os desejos pouco convencionais das crianças esse ano. Uma me pediu máscaras de presente, mais nada, disse que a dela estava frouxa e ela vivia com medo por causa disso. Várias pedem a cura para o coronavirus junto com os presentes. Teve um menino que foi direto ao assunto em sua carta de linha única: "Oi Papai Noel, quero a vacina e um X-box". 

Pelo menos com as mensagens eu tenho algum tempo para pensar e posso pedir ajuda. Difícil mesmo é nas sessões on line, quando as crianças pedem essas coisas e eu tenho que responder ali, na lata; ou então tenho de vê-las chorando por não ganhar um abraço. Ainda assim, prefiro esse contato do que o contato nenhum das lives ou das gravações do totem, horas e horas no estúdio fingindo interagir com as crianças. 

O pior de tudo é que, mesmo com todo mundo morrendo de novo, o povo não pára de lotar o shopping. Querem morrer comprando, agarrados aos produtos. Coisa mais esquisita esse tempo. E olha que eu já vi de tudo com esses 65 anos nas costas. 





domingo, 13 de dezembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA N°34 - Às compras

Já não havia mais arroz nem cuscuz há três dias, o café acabaria dali a dois turnos, mas foi com o fim do papel higiênico que a verdade se impôs: a feira não poderia mais ser postergada.

Ir ao mercado nunca foi o meu forte. Essas coisas mundanas do comer e do limpar, grande prisão do cotidiano, desde sempre roubaram a minha paz. Depois da pandemia, no entanto, as compras se transformaram de vez num inferno.  

Mais se parece com uma missão de guerra. Armado de máscara e álcool em gel você sai para a batalha, corajoso, ciente dos riscos. Nunca sem uma lista de compras, dessa vez organizada pelas seções do supermercado, para evitar a cena clássica de atravessar todos os corredores de volta em resgate de um produto esquecido lá para as bandas da entrada.

Ao entrar no supermercado,  você lamenta profundamente a presença de toda as outras pessoas, desumanizadas em sua mente como potenciais transmissores de coronavirus. Acabou-se aquela intimidade dos corredores,, aquelas avaliações sobre o sabão que lava a roupa do mesmo jeito pela metade do preço, a indignação compartilhada pelo quilo de feijão custar nove reais. Nada disso, agora é foco na missão: cumprir a rota das prateleiras, manter distância e chegar o quanto antes, são e salvo, em casa. 

Na volta para casa você nem se anima mais, pois sabe que os seus problemas estão apenas começando. Terá de tirar a roupa do lado de fora, na área de serviço, correndo o risco de dar lance para a vizinhança. Borrifar álcool 70 em todas as sacolas e deixa agir enquanto toma banho. Desinfetado,  volta à última luta: o banho das compras. Experiente em banho de menino e banho de cachorro, o banho dos produtos me deixa até hoje estarrecida. 

Feliz por estar vivo, você encontra as últimas forças para guardar tudo em seus devidos lugares. Toma um copo d'água. Passa um café. E reza em prol da multiplicação da feira na dispensa para que você nunca mais precise passar por isso.



domingo, 6 de dezembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA N°33- Escapulidas

Sei que ninguém aguenta mais esse papo de quarentena e isolamento social.   Mas a pandemia ainda não acabou, o que se há de fazer? Nós, os Isolados, continuamos bem guardados em casa. 

Devo confessar, no entanto,  que tenho lá minhas escapulidas. Peço que não se zangue,  cara leitora, e que não me julgue, estimado leitor. Atire a primeira pedra aquele que, no meio de uma pandemia, nunca escapuliu.

Não falo do protesto ao qual eu tive de ir, nem das providências policiais e bancárias de quando a minha mãe foi roubada. É outro o departamento.

Vou logo confessar tudo de uma vez, do menos para o mais grave. Primeiro que durante a feira, às vezes, eu me aproveito e passeio no supermercado. Entre uma prateleira e outra, eu me distraio com itens coloridos, que eu nunca vou comprar, só pelo sabor de estar mais um pouco fora de casa. Segundo: dia desses, voltando da farmácia, eu acabei parando em um café. Ele surgiu na minha frente, luminoso, recém-inaugurado, perto da minha casa. Eu não pude resistir. 

Terceiro, e o mais grave, pelo que desde logo peço a caridade de vosso perdão. Não é tanto pelas medidas sanitárias, que foram todas preservadas. O pecado residiu na luxúria. No desfrute de tanta felicidade numa só escapulida, enquanto meus companheiros isolados padeciam trancafiados em suas casas numa tarde tão bonita.

Eu ganhei as ruas de novo, em cima da minha bicicleta. A padroeira da cidade me saudou quando passei em frente à sua catedral. Confraternizei com os irmãos venezuelanos que celebravam um culto no Ponto dos Cem Réis. O vento acariciou meu rosto entre as árvores da Praça Rio Branco. Desci para a Lagoa, natalina, festejante.

Do alto do meu êxtase, pensava: eu amo a rua, a rua é a minha casa, um dia eu volto pra rua de vez. Um dia, próximo, mais perto do que longe. Um dia em que eu poderei abraçar as pessoas, apertar as mãos delas, beijar-lhes as bochechas. Será o dia mais feliz da minha vida.

Enquanto isso, continuarei em casa. Escapulindo, de vez em quando, que ninguém é de ferro.

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...