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sexta-feira, 23 de julho de 2021

“O pássaro secreto” de Marília Arnaud, por Ana Lia Almeida



    Quis o destino que eu resolvesse ler a estória de Aglaia Negromonte justo na semana que havia tirado para repousar entre um semestre e outro, já tão sofrida com o trabalho remoto e a vida da pandemia. Não pode ter havido ideia pior. Se você está para ler esse livro, não o faça assim, sem pensar, muito menos achando que vai se distrair ou conseguir escapar daquelas páginas medonhas. Você vai voltar aos piores medos da sua infância e àquele período geralmente infeliz de transição à adolescência para reencontrar todos os fantasmas dos quais julgava já haver se livrado há anos. Pelo menos foi o que aconteceu comigo.   

Ainda mais porque esses meus dias de descanso atrapalhados pelo “Pássaro Secreto” de Marília Arnaud aconteciam numa casa de praia em que eu costumava passar as férias da minha pequenice, em frente ao mar, ouvindo o barulho das ondas o tempo inteiro, pés descalços de um canto a outro da pequena enseada com arrecifes e piscinas naturais espalhadas por todos os lados, caçando tatuís e tanajuras com meus primos. Chama-se Serrambi, mas poderia muito bem chamar-se Paraíso, ao litoral sul de Pernambuco. E como qualquer Paraíso que se preze, guarda em si todos os infernos do mundo; pois era bem aqui, no meio dessa maravilha, que a pequena Ana Lia morria de medo de morrer toda vez que chegava a noite, quando os escuros da praia ameaçavam engolir meus pais ao saírem para desfrutar das muitas estrelas e eu, sem coragem de acompanhá-los, ficava chorando em silêncio aguardando que retornassem vivos; bem aqui, onde eu tão pequena já perdia o sono por qualquer angústia do mundo que até hoje me assola; aqui, onde a luz elétrica muitas vezes faltava e também a água nos idos dos anos 80, e eu tinha muito medo de morrer de sede ou de escuro; ou de banho de mar na maré alta que podia a qualquer momento me engolir para sempre ou mesmo me matar de medo do barulho do vento no meio da madrugada.


Pois bem, voltemos ao “Pássaro Secreto” da menina Aglaia. Ele veio parar dentro do meu ventre. Sim, Marília, foi isso que as suas palavras fizeram comigo aqui na beira da praia da minha infância perdida. Acordei de madrugada duas noites seguidas com o tal pássaro me bicando, me engasgando por dentro com suas penas esvoaçantes querendo sair de mim e ficar lá dentro, ao mesmo tempo. Ao longo dos dois dias em que a leitura me acompanhou, senti uma angústia me tomando pelas horas encompridadas pelas férias, uma vontade danada de chorar, um medo de morrer eu mesma ou qualquer um dos meus, até mesmo os que já morreram, como o meu pai. Eu, pequena de novo, com medo do escuro.

Para completar, chovia e ventava no meio da madrugada insone em que nada me restava a não ser avançar na tristeza de Aglaia que já se fazia minha própria tristeza. Atormentada pelo livro misturado ao barulho de mar, vento e chuva _ “a água tamborilando nas telhas e escorrendo nas calhas, o vento chiando e gemendo nas fendas da janela”, acompanhei as dores da menina, a inveja que sentia da meia-irmã Thalie, os ciúmes do pai e de Demian, a decadência de sua mãe, a lealdade da sua avó como a única coisa feliz da sua pouca vida. Tive muita pena dela e também de Thalie, sem mãe, sem avó, suportando toda aquela vingança sem ter culpa de nada.

Ai, Marília... “sombras, sombras por trás dos arbustos, pedras, tronco de árvores, sombras às minhas costas, sombras dentro de mim”.


sábado, 17 de julho de 2021

RITA NA LUTA - Assalto

    


    Todo mundo passando carteira e celular, quem reclamar vai na próxima parada direto pro céu ou pro inferno, conforme o merecimento. Bora logo, minha tia _ era o assaltante armado apressando Rita, que vinha sentada em um daqueles bancos altos, logo após a roleta. Enquanto isso, o comparsa recolhia o apurado dentro de uma sacola preta, começando pela gaveta do cobrador, ordenando que todo mundo se calasse. Mas Rita, ao invés de entregar o seu pouco dinheiro e o seu celular muito velho, teve um ataque de riso, o que já tinha acontecido outras vezes em que ela entrara em pânico. 

 Como é? A senhora tá achando graça de quê? O rapaz não estava mesmo para brincadeiras e, com o revolver na mão, mandou Rita se levantar para torná-la refém, empurrando-a com os braços para trás até a metade do busú, a arma apontada para a lateral de seu rosto. Em meio a choros e gritos assustados, um homem forte e alto se recusava a entregar suas coisas, levando um soco no nariz e ficando desacordado enquanto o da sacola retirava-lhe o conteúdo dos bolsos.

A essa altura, Rita já havia conseguido dominar suas risadas nervosas, lembrando dos exercícios de respiração que a patroa fazia quando se dizia estressada, isto é, todos os dias. Especialmente quando se punha a reclamar do pó em cima de algum móvel, da comida salgada ou da pia do banheiro molhada depois que ela própria escovava os dentes. Respiiiiira e solta; respiiiiira e solta, era o celular de dona Laura numa tal de meditação guiada que Rita tentava recapitular para se acalmar naquela situação de agora. 

Acabou a risadagem, tia? Agradeça a Deus eu não ter estourado seus miolos, vá me passando suas coisas agora, vá! O rapaz afrouxava o nó que havia dado nos braços de Rita, olhando atento para todas as direções, vigiando os passageiros enquanto o outro terminava o serviço, já quase alcançando os primeiros assentos, perto do motorista.  Foi quando Rita virou-se, devagar, para entregar-lhe os pertences, e reconheceu o menino. Era Valdinho, filho da sua comadre Jaciara. A máscara preta de tecido escondia os lábios grossos que Rita conhecia desde pequeno, mas os olhos pretinhos e ligeiramente puxados aos potiguaras da mãe dele eram inconfundíveis. 

Rita ficou ali parada, olhando para Valdinho pelos breves instantes que o coração prolonga noutra dimensão de tempo. O tempo de uma vida. A vida da comadre Jaciara grávida, pensando em tirar, e recebendo de Rita o apoio para criar aquele menino sem pai. O batizado dele, aos três anos, comemorado na laje da madrinha com uma feijoada. O garoto crescendo, gostando de estudar na mesma escola da menina de Rita, os dois muito elogiados pelos professores. Clarinha se afastando, dizendo que o menino estava com amizade errada. Jaciara se fazendo de inocente, se amostrando com roupa de butique no dia das mães. Rita na delegacia mais a comadre, jurando de pé junto que o menino era bom e não tinha nada a ver com o fumo que acharam com os colegas dele; deixando o salário do mês para inteirar a fiança. O afilhado todo arrumado voltando para a Igreja com a mãe. E agora aquele bandido diante das suas mãos estendidas com um celular e vinte reais.

Valdinho, envergonhado, afastou da madrinha seus olhos e a mira de sua arma. Deu-lhe as costas, poupando-a do roubo. O outro menino já tinha finalizado a operação, e os dois desceram do ônibus numa carreira desembestada.


sexta-feira, 16 de julho de 2021

Algumas palavras sobre o "Entrevamento" de Antônio Mariano

                                                     


Tive medo de ler “Entrevamento”. O que eu sabia sobre o livro era o bastante para não querer conversa com ele, para detestar a história que enchia aquelas páginas desconhecidas, para antever que aquilo me tiraria do lugar e talvez até me derrubasse. Tomei coragem, enfim, para atravessar a grade trazida na sua capa, curiosa com os escuros nebulosos estendidos até a parte de trás das suas orelhas e alcançando as palavras de Tiago Germano na parte de trás, sobre as miragens sedutoras e desorientadoras contidas no livro. 

Moacir, o protagonista, está preso por ter assassinado alguém, na mesma cela de uma travesti por quem nutre uma relação profundamente desrespeitosa, baseada no mais puro preconceito. Preconceito condizente com a totalidade da sua personalidade violenta, machista e racista, além de homofóbica, o que, concordando com as palavras de Rosa Amanda Strausz, “exige do leitor um exercício de compaixão difícil de ser realizado”. Ainda mais da leitora. Muito mais ainda de uma leitora como eu.  

Moacir é o tipo de cara de quem eu quero distância. Na minha existência de mulher feminista, “defensora de direitos humanos”, apoiadora de todas as bandeiras democráticas, sonho com um mundo em que Moacir não exista _ não porque seja exterminado, tampouco convenientemente invisibilizado dentro de um presídio, mas pela superação das condições históricas que produzem subjetividades como as dele. Esse mundo há de ser construído, e sei que essa minha fé é a mesma de Antônio Mariano, porque o conheço, ele é meu amigo; preciso quase me controlar diante das fronteiras literárias entre o autor e as suas criaturas para não golpeá-lo com as minhas inquisições sobre porque cargas d´água ele me apareceu com esse livro, ora essa!  Contenho a revolta para, logo em seguida, ver o favor que Mariano nos faz ao narrar certas verdades incômodas com essa história que ele inventou, tenho tristeza em reconhecer, a partir da nossa realidade mais óbvia. 

Moacir é um brutamontes, um ser humano odioso desses que encontramos em todas as esquinas e muitas vezes dentro das nossas próprias casas. Pior: algo dele está em cada um de nós. Humanidade não lhe falta, pelo contrário, é o que sobra nele. Uma ruindadezinha, uma vontadezinha danada de bater, de magoar, de possuir, de dominar. Não penso que isso compõe a “natureza humana”, de forma alguma; o que quero dizer é: quem sai aos seus, não degenera. No mundo de exploração do homem pelo homem, das mulheres pelos homens, das negras e negros pelos homens e mulheres “brancos”; na podridão desse mundo desigual em que se entrecruzam as violentas relações raciais, de classe social, de gênero e sexualidade; entre outras clivagens, só dá Moacir. Ele está em mim e em você, um pouquinho ou muito, mas sempre; essa é a verdade que Mariano habilmente escancara e, ao fazê-lo, nos mobiliza. Moacir nos põe em luta contra nós mesmos e contra o mundo em que ele pode viver e (re)produzir as suas violências todas.      

Assusta o fato de tratar-se do primeiro romance de Antônio Mariano, pelo domínio da narrativa longa e pela ousadia do estreante. “Estreante” é modo de dizer, e só se aplica à seara do romance, porque é notória a sua longa e brilhante trajetória com as letras, sobretudo com a poesia. Quanto ao seu “Entrevamento”, não bastasse a riqueza humana da temática, o livro também revela tesouros nos terrenos da forma. 

Primeiro: a alternância entre os capítulos em que o cotidiano de Moacir na prisão se intercalam com a sua vida pregressa conferem uma dinâmica muito envolvente ao romance. A relação com Joana e com os outros presidiários; com os diretores do presídio que se sucedem com diferentes perfis na gestão da política prisional; as trevas da mente enclausurada de Moacir; alternam-se com os tempos ao lado de Sandra Regina, de seu melhor amigo Cassiano, de sua família e de seu trabalho. Prepare-se para não dormir nem se alimentar ao longo dessas páginas que eu mesma li de um dia para o outro, literalmente.  

Outro aspecto de grande riqueza e complexidade do livro é a opção de narrá-lo em primeira pessoa. Ousado, esse Antônio Mariano. Em seu primeiro romance, resolve ficar tão próximo de um protagonista horroroso desses! Certamente ele estava ciente dos riscos contidos na opção narrativa que escolheu. Assim tão colado com Moacir, como apresentar algum tipo de contraponto à percepção dele? Notamos, ao longo do texto, que Mariano se preocupou com a questão e venceu o desafio. A leitora perceberá, por exemplo, que Sandra Regina não é uma vilã, muito menos uma pobre coitada. É uma mulher forte, que sai driblando as encruzilhadas impostas por uma vida de dificuldades. Mariano faz questão de dizer, também, que a mãe de Moacir passou a vida apanhando do marido e pai dele, mas também revidava essas agressões. Essa mãe era um centro de fortaleza e poder na vida dele, tendo arcado com o sustento dos três filhos e reconhecida como uma heroína. Ainda, o modo como Lúcia, namorada de seu melhor amigo, é caracterizada como uma mulher à frente de seu tempo e o embate sexual que ela finalmente “vence” contra Moacir dão mostras da habilidade de Mariano na complexa tarefa de distanciar-se, como autor, de seu protagonista narrador.

Por tudo isso concluo: “Entrevamento” não é para os fracos. Perca seu sono. Mergulhe no escuro dessa história e encontre os traços mais sombrios de si mesmo. Pode acreditar que vale a pena cada palavra.




Relatos da Pandemia

Tive a honra de ser convidada para contribuir com um texto meu para o Blog Relatos da Pandemia, uma iniciativa de um grupo de mulheres jornalistas _Zezé Béchade, Sandra Moura, Kiára Fialho e Sônia Lima _ "sobre o cotidiano desses dias tão difíceis, de perdas, de medo, angústia, insegurança, tensão, fragilidades". Os primeiros depoimentos já viraram até um livro, o e-book: Isolamento Social. Depois elas expandiram a ideia e abriram o espaço para outras pessoas de outras áreas trazerem os seus relatos com entrevistas, artigos, debates de ideias e pensamentos.

Confiram: http://www.relatosdapandemia.com.br/2021/07/13/ana-lia-almeida-conta-como-a-literatura-lhe-ajudou-a-sobreviver-na-pandemia/


Lançamento on line de "Curtinhas da Quarentena" - 03/07/2021


 

Vídeo-convite para o lançamento das "Curtinhas da Quarentena"


 

sexta-feira, 2 de julho de 2021

"Curtinhas da Quarentena" na Tabajara FM

Logo mais, às 14h (02/07/2021) eu estarei com o querido Adeildo Vieira e a maravilhosa Cíntia Peromnia no programa Tabajara em Revista (AM 1.110 FM 105,5) conversando sobre o lançamento das "Curtinhas da Quarentena" no dia seguinte. O programa começa às 14h e pode ser escutado ao vivo também pelo site da rádio https://radiotabajara.pb.gov.br/radio-ao-vivo. 

É claro que eu estou toda besta, porque vivo escutando a Rádio Tabajara e adoro esse programa!

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...