Quis o destino que eu resolvesse ler a estória de Aglaia Negromonte justo na semana que havia tirado para repousar entre um semestre e outro, já tão sofrida com o trabalho remoto e a vida da pandemia. Não pode ter havido ideia pior. Se você está para ler esse livro, não o faça assim, sem pensar, muito menos achando que vai se distrair ou conseguir escapar daquelas páginas medonhas. Você vai voltar aos piores medos da sua infância e àquele período geralmente infeliz de transição à adolescência para reencontrar todos os fantasmas dos quais julgava já haver se livrado há anos. Pelo menos foi o que aconteceu comigo.
Ainda mais porque esses meus dias de descanso atrapalhados pelo “Pássaro Secreto” de Marília Arnaud aconteciam numa casa de praia em que eu costumava passar as férias da minha pequenice, em frente ao mar, ouvindo o barulho das ondas o tempo inteiro, pés descalços de um canto a outro da pequena enseada com arrecifes e piscinas naturais espalhadas por todos os lados, caçando tatuís e tanajuras com meus primos. Chama-se Serrambi, mas poderia muito bem chamar-se Paraíso, ao litoral sul de Pernambuco. E como qualquer Paraíso que se preze, guarda em si todos os infernos do mundo; pois era bem aqui, no meio dessa maravilha, que a pequena Ana Lia morria de medo de morrer toda vez que chegava a noite, quando os escuros da praia ameaçavam engolir meus pais ao saírem para desfrutar das muitas estrelas e eu, sem coragem de acompanhá-los, ficava chorando em silêncio aguardando que retornassem vivos; bem aqui, onde eu tão pequena já perdia o sono por qualquer angústia do mundo que até hoje me assola; aqui, onde a luz elétrica muitas vezes faltava e também a água nos idos dos anos 80, e eu tinha muito medo de morrer de sede ou de escuro; ou de banho de mar na maré alta que podia a qualquer momento me engolir para sempre ou mesmo me matar de medo do barulho do vento no meio da madrugada.
Pois bem, voltemos ao “Pássaro Secreto” da menina Aglaia. Ele veio parar dentro do meu ventre. Sim, Marília, foi isso que as suas palavras fizeram comigo aqui na beira da praia da minha infância perdida. Acordei de madrugada duas noites seguidas com o tal pássaro me bicando, me engasgando por dentro com suas penas esvoaçantes querendo sair de mim e ficar lá dentro, ao mesmo tempo. Ao longo dos dois dias em que a leitura me acompanhou, senti uma angústia me tomando pelas horas encompridadas pelas férias, uma vontade danada de chorar, um medo de morrer eu mesma ou qualquer um dos meus, até mesmo os que já morreram, como o meu pai. Eu, pequena de novo, com medo do escuro.
Para completar, chovia e ventava no meio da madrugada insone em que nada me restava a não ser avançar na tristeza de Aglaia que já se fazia minha própria tristeza. Atormentada pelo livro misturado ao barulho de mar, vento e chuva _ “a água tamborilando nas telhas e escorrendo nas calhas, o vento chiando e gemendo nas fendas da janela”, acompanhei as dores da menina, a inveja que sentia da meia-irmã Thalie, os ciúmes do pai e de Demian, a decadência de sua mãe, a lealdade da sua avó como a única coisa feliz da sua pouca vida. Tive muita pena dela e também de Thalie, sem mãe, sem avó, suportando toda aquela vingança sem ter culpa de nada.
Ai, Marília... “sombras, sombras por trás dos arbustos, pedras, tronco de árvores, sombras às minhas costas, sombras dentro de mim”.