Páginas

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Algumas palavras sobre o "Entrevamento" de Antônio Mariano

                                                     


Tive medo de ler “Entrevamento”. O que eu sabia sobre o livro era o bastante para não querer conversa com ele, para detestar a história que enchia aquelas páginas desconhecidas, para antever que aquilo me tiraria do lugar e talvez até me derrubasse. Tomei coragem, enfim, para atravessar a grade trazida na sua capa, curiosa com os escuros nebulosos estendidos até a parte de trás das suas orelhas e alcançando as palavras de Tiago Germano na parte de trás, sobre as miragens sedutoras e desorientadoras contidas no livro. 

Moacir, o protagonista, está preso por ter assassinado alguém, na mesma cela de uma travesti por quem nutre uma relação profundamente desrespeitosa, baseada no mais puro preconceito. Preconceito condizente com a totalidade da sua personalidade violenta, machista e racista, além de homofóbica, o que, concordando com as palavras de Rosa Amanda Strausz, “exige do leitor um exercício de compaixão difícil de ser realizado”. Ainda mais da leitora. Muito mais ainda de uma leitora como eu.  

Moacir é o tipo de cara de quem eu quero distância. Na minha existência de mulher feminista, “defensora de direitos humanos”, apoiadora de todas as bandeiras democráticas, sonho com um mundo em que Moacir não exista _ não porque seja exterminado, tampouco convenientemente invisibilizado dentro de um presídio, mas pela superação das condições históricas que produzem subjetividades como as dele. Esse mundo há de ser construído, e sei que essa minha fé é a mesma de Antônio Mariano, porque o conheço, ele é meu amigo; preciso quase me controlar diante das fronteiras literárias entre o autor e as suas criaturas para não golpeá-lo com as minhas inquisições sobre porque cargas d´água ele me apareceu com esse livro, ora essa!  Contenho a revolta para, logo em seguida, ver o favor que Mariano nos faz ao narrar certas verdades incômodas com essa história que ele inventou, tenho tristeza em reconhecer, a partir da nossa realidade mais óbvia. 

Moacir é um brutamontes, um ser humano odioso desses que encontramos em todas as esquinas e muitas vezes dentro das nossas próprias casas. Pior: algo dele está em cada um de nós. Humanidade não lhe falta, pelo contrário, é o que sobra nele. Uma ruindadezinha, uma vontadezinha danada de bater, de magoar, de possuir, de dominar. Não penso que isso compõe a “natureza humana”, de forma alguma; o que quero dizer é: quem sai aos seus, não degenera. No mundo de exploração do homem pelo homem, das mulheres pelos homens, das negras e negros pelos homens e mulheres “brancos”; na podridão desse mundo desigual em que se entrecruzam as violentas relações raciais, de classe social, de gênero e sexualidade; entre outras clivagens, só dá Moacir. Ele está em mim e em você, um pouquinho ou muito, mas sempre; essa é a verdade que Mariano habilmente escancara e, ao fazê-lo, nos mobiliza. Moacir nos põe em luta contra nós mesmos e contra o mundo em que ele pode viver e (re)produzir as suas violências todas.      

Assusta o fato de tratar-se do primeiro romance de Antônio Mariano, pelo domínio da narrativa longa e pela ousadia do estreante. “Estreante” é modo de dizer, e só se aplica à seara do romance, porque é notória a sua longa e brilhante trajetória com as letras, sobretudo com a poesia. Quanto ao seu “Entrevamento”, não bastasse a riqueza humana da temática, o livro também revela tesouros nos terrenos da forma. 

Primeiro: a alternância entre os capítulos em que o cotidiano de Moacir na prisão se intercalam com a sua vida pregressa conferem uma dinâmica muito envolvente ao romance. A relação com Joana e com os outros presidiários; com os diretores do presídio que se sucedem com diferentes perfis na gestão da política prisional; as trevas da mente enclausurada de Moacir; alternam-se com os tempos ao lado de Sandra Regina, de seu melhor amigo Cassiano, de sua família e de seu trabalho. Prepare-se para não dormir nem se alimentar ao longo dessas páginas que eu mesma li de um dia para o outro, literalmente.  

Outro aspecto de grande riqueza e complexidade do livro é a opção de narrá-lo em primeira pessoa. Ousado, esse Antônio Mariano. Em seu primeiro romance, resolve ficar tão próximo de um protagonista horroroso desses! Certamente ele estava ciente dos riscos contidos na opção narrativa que escolheu. Assim tão colado com Moacir, como apresentar algum tipo de contraponto à percepção dele? Notamos, ao longo do texto, que Mariano se preocupou com a questão e venceu o desafio. A leitora perceberá, por exemplo, que Sandra Regina não é uma vilã, muito menos uma pobre coitada. É uma mulher forte, que sai driblando as encruzilhadas impostas por uma vida de dificuldades. Mariano faz questão de dizer, também, que a mãe de Moacir passou a vida apanhando do marido e pai dele, mas também revidava essas agressões. Essa mãe era um centro de fortaleza e poder na vida dele, tendo arcado com o sustento dos três filhos e reconhecida como uma heroína. Ainda, o modo como Lúcia, namorada de seu melhor amigo, é caracterizada como uma mulher à frente de seu tempo e o embate sexual que ela finalmente “vence” contra Moacir dão mostras da habilidade de Mariano na complexa tarefa de distanciar-se, como autor, de seu protagonista narrador.

Por tudo isso concluo: “Entrevamento” não é para os fracos. Perca seu sono. Mergulhe no escuro dessa história e encontre os traços mais sombrios de si mesmo. Pode acreditar que vale a pena cada palavra.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...