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domingo, 30 de janeiro de 2022

RITA NA LUTA - Doenceiro solto



Foi covid, seu Carlinhos. Não durou cinco dias no hospital. Tanto que avisaram a ele… Eu mesma dei conselho: se vacine, homem! Mas ele não quis saber. Dizia que o povo tava adoecendo era por causa da vacina, que não tinha precisão, que a vacina dele era a de Deus, essas conversas.

A moça de óculos escuros lamentava movendo a cabeça sutilmente de um lado para o outro, em modo de não, no que olhou para cima e encontrou os olhos de Rita prestando atenção na conversa. Rita, de pé no corredor do ônibus, segurava as barras de apoio do banco em que a moça vinha sentada ao lado de seu Carlinhos. Este, um senhor educado, havia oferecido o lugar a Rita assim que ela chegou, com sua bolsa pesada. Agradeceu, não precisava, então me dê suas coisas, muito obrigada. Ele notou, pelo reflexo das lentes dos óculos, o encontro do olhar da moça com o de Rita e, ao tomar a palavra, dirigiu-se às duas.

Meu filho chegou em casa com uma conversa dessas também, que não ia tomar a vacina. Pois dentro da minha casa você não pisa, eu dei as ordens. Deixei não. Trazer doença para a gente? Não era nem por mim, que fui o primeiro a entrar no postinho para me vacinar, quando chegou a minha vez. Mas tinha a irmã dele, que na época tinha tomado só a primeira dose; a minha netinha, que agora é que vai agendar… A gente não pode descuidar não, que o doenceiro está solto no meio do mundo.

Rita pegou a deixa e entrou de vez na conversa. Na casa da patroa dela foi adoecendo um atrás do outro, depois das festas do fim do ano. Ninguém lá se vacinou, tirando a filha do meio, que é brigada com todo mundo e não foi nem para o Natal. Mas caiu também, porque, além da covid, tá dando essa gripe aí, todo mundo pegando. Sei que começou com o caçula, depois do Natal. Já voltou pra casa doente mais a esposa e os dois filhos, os quatro tossindo, com febre e dor de cabeça. Tudinho positivou. Três dias depois, o patrão adoeceu do mesmo jeito. Passou mais uns dias, foi a vez de dona Laura, junto com o mais velho e a esposa. Essa bateu até no hospital, faltando ar. Por isso mandaram o menino deles pra casa da avó doente, mais um para eu tomar de conta. Uma peste! Escondendo os remédios de dona Laura, bulindo em tudo, espalhando os brinquedos pela casa toda, sem brincar com nenhum… Ainda judiava com o cachorro. Menino que come na hora que quer, não sabe, sem gostar de comida nenhuma que tem na mesa; lá ia eu atrás de salsicha pra fazer cachorro-quente na hora do almoço. 

A moça de óculos escuros balançava a cabeça em reprovação novamente, pouco antes de atender uma ligação. Ah, se fosse meu neto, dava logo umas boas palmadas, comentou seu Carlinhos. Pense numa bença! _ Rita continuou. Resultado: pegou fraqueza, vivendo só de lanche, terminou voltando pra casa doente também. Só quem testou foram os primeiros, mas acho que tudinho foi covid. Por que eu acho: porque eu fui a única que escapei. Se peguei, não tive nada. Se bem que no sábado senti a garganta um pouquinho, uma molezinha bem de leve. Passei o domingo deitada, tomando chá de alho com limão, e segunda-feira, pronto, já estava boa. Agora, isso por causa de quê?

Da vacina! Respondeu seu Carlinhos. A moça continuava na ligação, saída da conversa. Seu Carlinhos se ajeitava para descer do ônibus, devolvendo as coisas de Rita, que se preparava para sentar no lugar dele. Ela passou o restante da viagem cochilando. Acordou já bem pertinho de casa, com a moça de óculos escuros ainda ao telefone. Quase que Rita perdia o ponto. 


Foto: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/covid-passageiro-deixa-aviso-de-nao-sente-apos-espirros-em-onibus.phtml

sábado, 15 de janeiro de 2022

RITA NA LUTA - O mundo está perdido

 


Do assento onde estava, Rita acompanhava a algazarra dos meninos. Um deles acabara de sentar-se ao lado da mocinha do mesmo tamanho, deviam ter todos uns doze ou treze, no máximo catorze anos. Começou com o menorzinho pedindo o whatsaap dela, que negou: só passaria o numero para o outro, de boné. Eita porra, Gasguito ganhou a boyzinha! Assovios, batuques, gaitadas. Quando Rita voltou as vistas, os dois já estavam aos beijos, no meio do busú.

Esse mundo está perdido _ se espantava a senhora ao lado, antes de desatar a falar. A primeira vez que fui beijada, achei que tinha engravidado de gêmeos_ e olha que foi nas bochechas. Culpa da minha avó. Era Carnaval e eu, com onze anos, adorava as La Ursas. Aliás, eu amava tudo do Carnaval: as fitas, as  cores, as sombrinhas de frevo, o côco de roda, os bois, a animação que ficava nas ruas… mas minha avó não me deixava brincar. “Menina que pula carnaval se perde logo na vida”, dizia. Na minha cabeça, ela tinha medo de eu me perder no meio da multidão e não achar mais o caminho de volta. Eu já tinha me perdido uma vez, na feira do Oitizeiro, e não queria passar por aquilo novamente. A tarde todinha andando de um lado para o outro, morrendo de medo de ficar de castigo quando me encontrassem… Então ela explicou que o se perder não era daquele jeito, e sim entrar para a vida errada, se desviar do caminho certo de viver, como engravidar antes da hora. “E como é que acontece uma coisa dessas, vó?”, eu perguntei. “Começa os meninos beijando você no Carnaval, por exemplo”. Prometi não deixar ninguém me beijar nem sair da nossa calçada, e assim consegui aproveitar um pouco a folia, morta de feliz. Até que, junto com o urso mais animado do bairro, vieram Amaro e Antônio. Já chegaram me dando um beijo em cada bochecha.

O pai deles tinha uma vendinha na esquina, onde os meninos se revesavam ajudando no balcão. Eu gostava dos dois, que eram também meus colegas da escola. Quando minha avó me mandava ir na vendinha, o caminho todo eu ia suando, tentando adivinhar qual dos dois estariam naquele dia. Moeda para cima: cara, o sorriso tímido de Antônio; coroa, os olhos pretinhos de Amaro.

“A la ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro”... e aquele urso branco de estopa rodopiando na nossa frente. Eu, apavorada, engravidada por Antônio e Amaro ao mesmo tempo, começando a me perder nos caminhos errados do Carnaval. Chorei até a quarta-feira de cinzas, e, como a barriga não cresceu, deixei a história pra lá.

Rita, que ouvia com atenção, já se arrumava para descer do ônibus. Enquanto levantava, a senhora foi concluindo: Hoje em dia, isso não acontece mais. A internet está aí, ensinando de tudo para esses meninos. Como engravida, como não engravida, como troca a fralda… tudinho no celular deles, por isso o mundo está perdido. Vá com Deus, minha senhora. E vocês aí, tomem juízo.


Foto: Isabella Mayer/SMCS

https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/linha-colombocic-beneficia-370-mil-pessoas-por-mes/54747


O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...