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sexta-feira, 5 de agosto de 2022

As feridas abertas de “Porco de Raça”

 


“Porco de Raça”, em poucas palavras, é um livro importante. Não somente por ter ganho o prêmio Machado da DarkSide Books, tampouco pela atenção merecida que vem recebendo da crítica. Mais do que importante, é um livro necessário ao tempo em que vivemos pelas feridas purulentas que deixa sangrar.

Bruno Ribeiro, nesse romance editado pela DarkSide (2021), fabula uma distopia sobre um professor negro que é capturado para um reality show no qual é obrigado a lutar contra sujeitos considerados a escória social, sobre a rubrica de “criminosos”. Tudo isso numa cadeia de entretenimento voltado, primeiro, às elites, mas logo se expandindo rumo à popularização através do sucesso televisivo da violência. Na trama, enquanto o ritmo frenético da narrativa de Bruno vai nos tirando o fôlego, o passado do protagonista - conhecido nos ringues como Porco Sucio - descortina os caminhos atravessados pela violência racial  e de classe da sociedade brasileira. 

Ao meu ver, “Porco de Raça” corta na carne de um Brasil ignorante de suas próprias feridas pelo menos três graves purulências. 

Primeiro, o racismo em geral. O institucional. O estrutural. O nosso. Aquele que é constitutivo da forma como se organiza o mundo e as relações sociais no Brasil. Os “criminosos” capturados, e, portanto, escravizados, que vão parar no programa de luta, estão implicados numa inescapável racialização. Tanto porque costumeiramente os negro é que são tidos por “bandidos”, como porque uma das marcas dos processos de racialização é a comparação com a “natureza”. O negro, assim, é sempre animalizado, bestializado, e no livro essa etiqueta da degeneração se perfaz com o uso das máscaras de animais para esconder os rostos dos lutadores. No caso do Porco Sucio, que evidentemente não era um “criminoso”, e sim um “fracassado”, a vulnerabilidade que o levou aos ringues é compartilhada socialmente pelas pessoas negras, na vida comum desses corpos em luta constante pela sobrevivência e, como o professor protagonista, comumente “fracassam”. 

Segundo, o livro desnuda o impacto do racismo na produção da subjetividade das pessoas negras. Insegurança, sabotagem, branqueamento. O modo como o rapaz apaixonado por Wênia enxerga embate quando o que ela lhe oferece é companheirismo, porque desconfia, e desconfia porque a vida o ensinou a desconfiar, sempre. O modo como seu irmão, de outro lado, alisa desde cedo os cabelos para se branquear, e todos em sua família mimetizam o mundo dos brancos - porque é real, o mundo é mesmo dos brancos. Luta, luta, luta. Luta perdida, por todos, não só pelos negros e negras. Eu, enquanto mulher branca, aprendi. Li. Ouvi. Ecoou em minhas memórias certas situações que incompreendi ao me relacionar com pessoas negras, por carregarem um tipo de experiência social que não estava ao meu alcance. Intelectuais como Franz Fanon e Lélia Gonzalez já haviam me explicado, mas com Bruno aprendi um pouco mais, de outro jeito.

Três: os rumos da produção da violência no Brasil e no mundo. Nessa distopia muitíssimo plausível de Bruno, lemos o Brasil que bate à nossa porta e estamos, muitos de nós, deixando entrar. O Brasil que vê crescer os clubes de tiros. O país dos grupos de extermínio. A audiência dos programas policialescos de todos os dias, xingando o povo preto pobre de bandido e perguntando cadê os direitos humanos. O cara que invade a festa e mata o aniversariante por discordar de suas opções políticas. Quem tem coragem de apostar com Bruno que, por esses dias, não saiam por aí catando os pretos pobres, metam-lhes máscaras de bicho e os joguem num ringue para lutar uns contra os outros, arrodeados de câmeras?

Nos cabe mesmo, lutar. Com a força de nossas palavras. Com o exemplo de nossas atitudes. Com o nosso voto, esse ano. Para que não termine se impondo essa tragédia anunciada por Bruno Ribeiro nas linhas de “Porco de Raça”.    


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