Música Artesanal, este é o livro de partituras que Milton Dornellas lançou na noite de 04 de junho de 2025, em João Pessoa. Editorado pel´A União (2025), o songbook foi partiturado por Rudá Barreto e Uaná Barreto, este último tendo também feito os arranjos junto com Sérgio Gallo. Maúde Viscardi participa da obra como assessora de imagem, além de companheira de toda a vida e de todas as canções. Na capa elegante de fundo preto, vemos saltar a fotografia de Thercles Silva registrando as mãos de Milton apoiando seu violão, e, abertas as páginas, a produtora musical Adriana Pio nos apresenta o autor com as palavras certas para traduzir a grandeza musical e afetiva desse artista tão admirado.
A frente da livraria União estava lotada de gente para vê-lo, principalmente os muitos artistas que abundam nessa terra e tem em Milton uma referência. O evento contou com uma mesa de abertura composta pelo próprio autor do livro, por Naná Garcez, diretora da Empresa Paraibana de Comunicação; pelo jornalista André Cananéa, que apresentou a obra; pelo o querido músico Adeildo Vieira e por mim, que fui devidamente apresentada como escritora e filha de Ronaldo Monte, um dos principais parceiros musicais de Milton Dornellas. Depois que falamos, alguns dos melhores artistas da Paraíba cantaram e tocaram suas canções: Dida Vieira, Escurinho, Adeildo Vieira, Totonho, Gláucia Lima, Uaná Barreto, Rudá Barreto, Chico Limeira e, pra terminar, o coral Voz Ativa cantando “Talo de Capim”. O momento foi muito emocionante e certamente entrou para a memória das artes da nossa terra.
Quando Milton me convidou para estar na mesa desse lançamento, eu não pude recusar. Mas sabia que a tarefa seria uma das mais difíceis de toda a minha vida por conta da intensidade das emoções que a música dele me evoca, sobretudo memórias de infância e saudades irremediáveis. A pedido de algumas pessoas que estavam presentes, partilho o texto que li me tremendo toda.
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Eu não sei ler esse livro em que Milton gravou suas músicas, mas a música de Milton está gravada em mim desde criança.
Digo assim, “a música”, para aludir a uma força vital que eu, pequena, sentia circular ao redor da mesa nas muitas farras que aconteciam na casa dele ou lá em casa. Sou sobrinha de Milton porque sou filha de Goga e Rona. Ronaldo Monte, que era quem devia estar falando aqui no meu lugar e por isso eu resolvi escrever pra escolher bem as palavras e não fazer vergonha a ele.
Pois bem, nessas festas basicamente meus pais largavam os filhos lendo gibis na casa de Milton e Maúde e eles ficavam fazendo as músicas que agora estão nesse livro. De repente começavam a bater palmas e batucar os talheres nas panelas, nos pratos, nas taças; Milton pegava o violão e Rona pegava a caneta, era assim. Eu com a Turma da Mônica, esquecida, enquanto eles cantavam, tocavam e dançavam: Milton, Maúde, Nana, Celinha, meus pais e quem mais estivesse por perto. Essa seiva me nutriu de algo que eu não entendia, mas me dava muita vontade de viver.
Milton é de uma geração de artistas que encara a música e a arte como instrumento de transformação social. Ele participou de muitas iniciativas de intervenção político-cultural na Paraíba dos anos 80 e 90: teve o Musiclube da Paraíba, junto com Pedro Osmar, Paulo Ró, Chico César, Totonho, Adeildo Vieira, entre outros; teve o Projeto Fala Bairros, que cuidava de fomentar a participação sócio-cultural nos bairros de João Pessoa; teve o Grupo Etnia, com Alice Lumi e Fernando Pintassilgo; e também o Assaltarte, com Xisto Medeiros e Marcos Fonseca. Além de ter participado desses grupos todos, ele ainda conduziu a política cultural da cidade à frente da FUNJOPE durante alguns anos. Por esse engajamento e pela qualidade da sua obra, Milton Dornellas é respeitado por todos.
Muitas cantoras e cantores gravaram as suas músicas, como Gláucia Lima, Dida Vieira, Soraia Bandeira, Ana Salvagni, Escurinho, Isa Talbe, Paulinho Ditarso e o Coral Voz Ativa. Entre os seus principais parceiros de autoria estão Pedro Osmar, Paulo Ró, Totonho, Adeildo Vieira, Joãozinho Gomes, Alberto Moby e, logicamente, Ronaldo Monte.
A discografia de Milton conta com oito discos, afora as coletâneas de que participou. No Ventre da Besta (1986), o seu primeiro, atestamos uma qualidade melódica assombrosa, uma riqueza de instrumentos e arranjos combinados com letras fortes, criativas, como a de “Bolero de Bordel”, mostrando ao mundo um músico “virado no dindin”, que faz rima até com “fila do INAMPS” - ele é “tampa”, é “mala”, é “cola”, ele é “mesmo o bom de bola!”. No disco seguinte, de 1993, nomeado pela canção Mandrágora (1993), ouvimos um experimento psicodélico sentido como uma saudade, uma melancolia grave que traz “flores pastos, mantras e a via láctea”.
O meu preferido é Ancestrais, disco de 1998 gravado com o Quinteto da Paraíba, de uma beleza musical rara. “Trago um coração”, ele nos canta, “apanhado no meio do algodoal. Meio lua, meio pandeiro, meio trovão, com sorrisos e tambores dentro da noite”. Aqui temos Xangai, temos Soraia Bandeira, temos Chico César, temos Adeildo com “Mamma Jazz” - “se cuide, pois você é tão novo, tão novo, tão novo, oh indefeso filhinho” - temos Totonho e Pedro Osmar no “Barqueiro de Luanda”, e temos o auge da boniteza da parceria de Milton com Ronaldo Monte: “Cantiga de Chegança”, “Meu canto tem velas”, “Deixe Estar”, “Centauro”, e a minha preferida entre todas: “Talo de Capim”. Quando acordo no meio da noite, ela toca dentro de mim: “copo d´água, sono calmo, salva o coração, coisa tão pouca”.
Depois vieram Sete Mares (2000), Alinhavo (2002), O Gargalhar da Invernada (2007), inspirado no “Grande Sertões: Veredas”, de Guimarães Rosa; em 2012 veio Bom mesmo é a gargalhada no final e Senderos em 2019, com a comovente “Cantiga do Sol”. Mas não tenho aqui tempo nem coragem suficiente para falar de todos esses discos que nasceram, a maioria, à medida em que eu crescia dimensionando cada vez mais o tamanho de Milton, de meu pai, dos artistas que estavam ao redor deles, da grandeza musical da Paraíba, da minha própria vontade de virar escritora e botar pra fora o que esse povo encheu em mim desde pequena.
Às vezes perguntam a Milton: “Mas você vive de música?”, e ele responde: “Eu morro de música”. É esse tipo de paixão que nos embala a criar outras métricas para o mundo; um mundo solidário e cheio de poesia como a dele. Com esse livro, Milton Dornellas deságua no mar. É a sua própria “Cantiga de Chegança”, composta por ele e por Ronaldo Monte:
"Desde montes e baixadas
Caminhei, cortei estradas
Demorei muito a chegar no mar
E lá domar fogo e paixão
Minha balsa tão bonita
Enfeite de flor e fita
Desce o rio até chegar no mar
E adoçar meu coração
Nessas águas caudalosas
Às “vez” com lua, às “vez” remosa
Cruzei rio até chegar no mar
E festejar com o coração”