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domingo, 29 de novembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA Nº 32 - Democracia Remota

Não estou dizendo que não é pra ir votar. Daqui a pouco eu vou lá, sim, apertar no botão a minha pouca escolha entre o péssimo conhecido de sempre e a nova tragédia. Certamente estaria mais animada se votasse em São Paulo, em Porto Alegre, ou mesmo em Recife, mas aqui em João Pessoa a fedentina das cabines de votação se poderá sentir de longe, muito além das zonas eleitorais. 

Ainda assim, jamais deixaria de votar, mesmo com medo da pandemia. Me impede a consciência das décadas em que meus pais não puderam fazê-lo, eles e seus amigos que pagaram com a própria vida por isso. A pouca escolha que nos resta nas urnas, afinal, é o outro lado da nossa pouca disposição em brigar pelo que nos cabe. Essa preguiça de lutar pelo que é nosso, essa covardia de aceitar as coisas mais absurdas como se fossem normais, essa cretinice de se apropriar individualmente daquilo que é comum a todo mundo. 

Só quero dizer que estou farta dessa pouca democracia. Essa democracia remota, de apertar um botão de dois em dois anos e só. Farta dessa cidadania passiva, que, quando muito, faz um post no Instagram. Cansada de mandar ofícios e pedir licença, de saco cheio da paz.

Eu quero é gritar, de máscara, junto com o povo preto na frente do Carrefour. Gritar bem alto que mataram um homem e por isso não podem continuar fazendo compras como se nada tivesse acontecido. Atear  fogo, mesmo, no poder desses machos ricos e brancos que passam por cima de tudo que não é deles. Quero revidar todas as muitas vezes em que somos atingidas pelo machismo, vingar as mortes das mulheres e todas as pessoas que sofreram por amar conforme sua própria vontade. Já chega, também, desse mundo em que o lucro vale mais do que as pessoas.

Por isso eu vou mesmo votar, daqui a pouco, de máscara, caneta e álcool em gel. Mas não me contento com isso.     

domingo, 22 de novembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA N°31 - Consciência Branca

Claro que sou contra bater numa pessoa até a morte, mas precisava mesmo daquele vandalismo todo que mostrou na televisão? Correria, confusão, estilhaços por todos os lados, isso lá é coisa de cidadão de bem? Uns marginais, uns maconheiros, coitada daquela gente dentro do supermercado que só queria fazer sua feira em paz.

Não vá dizer que sou racista, tudo agora é esse mimimi. Logo eu, que trato tão bem o Seu Valdemar, no Natal sempre dou um panetone de chocolate pra ele levar pra ceia depois que larga lá do prédio. Eu perguntei pra ele, viu, se ele achava isso mesmo que estão dizendo, que o rapaz foi vítima de racismo. Seu Valdemar, um negro muito inteligente e ponderado, também concordou que aquela tristeza poderia ter acontecido com qualquer um de nós,  independentemente da cor da pele. Aliás,  quer dizer que agora tem raça no Brasil? Não é tudo raça humana, todo mundo não é igual? Vejo todos verdes e amarelos, como o Presidente, e Seu Valdemar também pensa assim. Eles mesmos são preconceituosos, a turma do mimimi. 

Outra coisa: essa tal consciência negra, eu não entendo. Tem um consciência branca, também? Porque daqui a pouco quem vai ficar sendo vítima de preconceito somos nós, se não tomar cuidado. Não tem pra quê, gente, a escravidão já acabou há trocentos anos, vamos ficar nessa, cultivando o ódio? 

Os guardas erraram, sim, mas o que o Carrefour tem a ver com isso, meu Deus? Deixem o supermercado pra lá, como eu vou poder ir às compras em segurança com meu cachorrinho se podem tacar fogo lá dentro a qualquer momento? 

domingo, 8 de novembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA N° 30 - Nós tivemos de ir

Eu juro que não queria, mas tive de ir. Vocês sabem que eu estava quieta no meu canto, isolada. Por mim, teria ficado em casa com meu trabalho remoto e meus pratos pra lavar. Mas fui obrigada.

Sim, tinha muita gente. Como é bom, gente! Aqueles toques de cotovelo, aqueles sorrisos debaixo das máscaras, aqueles olhares de como é bom te ver por aqui na luta de novo. Sobrevivemos, logo lutamos.

Mas fomos todos obrigados. Fomos acordados de manhã logo cedo, não podemos mais nem dormir. Estava lá, inscrito na madrugada: INTERVENÇÃO! Vocês não tem escolha, não  podem mais, não deixamos e pronto! Como assim, não deixam e pronto? 

Por isso tivemos de ir. Fomos lá, gritar que não aceitamos. Se pensam que é assim, estão muito enganados. Esses cretinos! Agora sim, vão ver a balbúrdia. 

Já aceitamos demais, demais mesmo.  Já chega das suas genitálias podres quando invadem os nossos debates. Não estamos interessados nisso, queremos dialogar, conhecer, construir. Mas estão nos perseguindo, nos desprezando, acabando conosco. 

Ainda mais agora, todo mundo sem poder sair de casa. Covardes! Pois arriscamos a própria vida, porque não tem vida que preste sem escolha. Foi por isso que fomos, e iremos de novo. 

domingo, 1 de novembro de 2020

CURTINHA DA QUARENTENA Nº 29 - Mas a pandemia já não acabou?

Maldita hora que eu inventei de passar mal! Nunca mais eu durmo, depois do que vi e ouvi por aqui nesse hospital. Pessoas se internando aos montes, vidas se acabando de novo, trabalhadores exaustos e fartos de correr riscos. Mistura no fluxo de pacientes com a dita cuja e pessoas como eu, dando sopa com a minha pouca saúde no hospital. 

Só lembrei daquela moça na padaria, chacotando a minha distância dela na fila do pão: "Tudo isso é medo de covid, é?" Era. E não era pra menos. Os corajosos da vida normal, não posso com eles. Eu que não vou à praia, ao shopping, nem à mesa do bar. Mas precisei ir ao veterinário, que quis me atender sem máscara. O senhor por favor não me leve à mal, mas não haveria uma máscara no estabelecimento para o senhor utilizar? É só por causa da pandemia, mesmo, vá me desculpando a intromissão. 

"Mas a pandemia já não acabou, não, senhora?", perguntou o encanador, noutra situação. Eu parada diante dele, chocada com a pergunta, sem saber como responder, antes de me faltar o ar de vez quando, na sequência, ele me disse animado: "É... o Brasil tá se ajeitando. O presidente está melhorando muito o Brasil aos pouquinhos"... Eu soube o que dizer à moça da padaria e ao veterinário, mas não soube o que dizer a Seu Cícero. Tem horas que eu não sei mais como fazer.  

Me disseram no hospital que estão abafando tudo por causa das eleições, esperando só a votação acabar pra soltar as notícias e quem sabe fechar tudo de novo. Para arrematar a conversa, Seu Cícero me indicou um candidato a vereador, um sujeito muito prestativo que sempre ajudava as pessoas da comunidade. "Eu vou dar uma olhada, viu, Seu Cícero, obrigada". Às vezes posso, às vezes não posso com o mundo. 

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...