Páginas

sábado, 28 de agosto de 2021

Rita na Luta - Bofe de Bayeux


     

 O bofe mora em Bayeux, com biquinho assim, em francês. Ah, minha filha, não é a Baiê da gente, não, está pensando o quê? E ainda completou, cheio de chiado: “é a cidadje satélitche ao contrário, porque João Pessoa não seria nada sem o aeroporto”. Orgulho de ser de Bayeux, não esquece o biquinho. Trabalha lá no saguão, numa lanchonete. Quer dizer, um café, que vende pãozinho de queijo a quinze reais e ele jura que enjoa de tanto comer.

Rita se sacudia toda, rindo dessa história que o rapaz contava alto para o amigo no banco de trás, todo o ônibus escutando. Lembrou da sua vizinha, Taci, de Jaboatão dos Guararapes, onde também se falava chiando um pouquinho, como o bofe de Bayeux, mas só na parte dos “S”. Rita adorava a maneira de falar de Taci, mas tinha gente na vizinhança que achava ela metida a besta, por causa daquele sotaque.

Eu até fiquei meio desconfiado daquele chiado todo, achei coisa de gente falsa… Mas depois que a gente saiu, que conheci melhor a pessoa dele, eu entendi. Lá, no aeroporto, como anda gente de tudo o que é canto, ele vai prestando atenção na fala de cada um. Quem chia mais é o povo do Rio, os “cariuócash”. Pessoal de São Paulo é mais puxado nos “erres”, lá pelo “aeroporrto”. E por aí vai: o “trem” dos mineiros, o “tchê” dos gaúchos, os mil jeitos de falar em nordestinês. Ele vai copiando um tiquinho daqui, outro dali, misturando tudo. Eu acabei me acostumando com isso. Se engana quem acha que a gente é de um jeito só.

Verdade. Nem vida sofrida de pobre é de um jeito só. A vizinha de Rita, por exemplo, cansou-se do prá-lá-e-pra-cá entre Jaboatão e Recife, onde trabalhava. Todo dia Taci pegava um ônibus de sua casa até a estação do metrô, atravessava o Engenho Velho, Floriano, Cavaleiro, Coqueiral, Tejipió, Barro, Werneck, Santa Luzia, Mangueira, Ipiranga, Afogados e Joana Bezerra, até chegar na Estação Recife, descer e caminhar mais quinze minutos para bater o ponto na Conde da Boa Vista. Duas horas para ir, outras duas para voltar. Taci enjoava com o balançado do ônibus e tinha vertigem com a velocidade das coisas ficando para trás no metrô. Só se aquietava caminhando, mesmo assim, muitas vezes chegava em casa ou no trabalho a ponto de vomitar. Veio-se embora viver em João Pessoa, iludida com a promessa de uma cidade ainda pequena e sem tanto engarrafamento. 

Agora, vivendo em Mandacaru ao lado de Rita, é verdade que Taci gastava menos tempo se deslocando. Mas nem por isso deixava de sair de casa cedinho e só voltar tarde da noite, perto da hora de dormir, feito Rita. Apesar de morarem na mesma cidade em que trabalhavam, a casa delas era como as cidades-satélites: não passavam de dormitórios. A bem da verdade, nenhuma das duas tinha tempo de viver.

Geraldo, mas só quer que chame de Jey. Internacional. Na hora que pediu meu telefone, eu gelei. Dou ou não dou? Terminei dando. É, acho que estou me apegando, sim. Mas não vá espalhar, viu, que o coração da bicha aqui é grande que nem pista de avião, pode vir pousando mais!


Foto: https://viajabi.com.br/onibus-arco-iris-buser-rainbow-friday-diversidade/

domingo, 15 de agosto de 2021

RITA NA LUTA - A briga do colchão



 Foi desse jeito, mesmo. O abençoado não reconheceu a própria casa, podre de bêbado. Parou na frente da cadeira de balanço de Cicinha, cambaleando, perguntando o que é que ela estava fazendo na calçada dele; a boca troncha, sem conseguir nem falar direito. Cicinha nem se deu ao trabalho de responder nada, somente apontou a direção e continuou se balançando. Parecendo um cachorro perdido, ele ainda olhou para todos os lados, sem saber nem onde estava. Bem na hora que o menino de Suzana veio passando, teve pena, pegou o bebum pela mão e voltou duas casas com ele.

Rita escutava essa conversa no banco da frente das duas mulheres, cabeça baixa, fingindo ler o panfleto de uma empresa de dedetização que recebera antes de entrar no ônibus. Aliás, sua casa estava mesmo precisada, infestada daquelas baratas pequeninas andando pelas suas panelas. Resolveria o problema com veneno de feira, mesmo, que era bom e barato, porque não tinha dinheiro para empresa de dedetização. Guardaria a propaganda para a patroa, que casa de gente rica os bichos gostam também, tem até mais comida espalhada pelos cantos. Melhor que pensar nas baratas, as suas ou as de D. Laura, com certeza era se inteirar daquela fofoca que lhe chegava sem esforço aos ouvidos.

Quando eu vim chegando do trabalho, Cicinha não esperou nem o boa noite: Osvaldo passou agorinha, cheio das cachaças! Apois eu entrei voando em casa, com óóódio. Peguei ele roncando de barriga para cima no meu colchão novo, aquela catinga de suor e bebida, não sabe? Meu medo é ele mijar ou vomitar no meu colchão, quando ele fica assim. Tanta luta para comprar esse colchão, mulher... A gente trabalha o dia todinho, só quer um canto pra dormir direito e no outro dia levantar boa para o trabalho de novo. O colchão que eu tinha antes, só você vendo, eu acordava parecendo que tinha levado uma surra, todo esburacado. Já era muito velho quando ganhei da minha patroa, sendo que ainda passei três anos com ele, até descobrir um ninho de rato dentro de um buraco perto do pé da cama. Por isso tenho cuidado com esse colchão novo, só deito tomada banho, não deixo ninguém comer nem beber nada na cama, para não esculhambar. 

Osvaldo diz que eu gosto mais do colchão do que dele. Vai ver que é verdade e, pra descontar, ele veio deitar todo fedido no meu lençol bem cheirosinho… Mas também, nem tive pena: forrei um lençolzinho e empurrei ele pro chão, nem acordou, de tão melado. Tá sem falar comigo já tem 3 dias. Eu já tô querendo é terminar com ele, mesmo, porque agora só quer viver em bar, nem faz mais nada comigo. Mas eu vou pra onde? Esse colchão é grande demais, não cabe lá na cama que tem na casa de mainha. Tô juntando, ainda, pra comprar uma cama bem espaçosa para o meu colchão, aí eu saio da casa dele.


Foto: https://www.universal.org/post/sono-tranquilo/

domingo, 1 de agosto de 2021

RITA NA LUTA - Sol e chuva, casamento de viúva



 O dia acordara ensolarado junto com Rita, às cinco da manhã, mas de repente desembestou a chover. Sol e chuva, casamento de viúva _ era a sua avó soprando-lhe uma lembrança do dia em que a menina Rita conhecera um arco-íris enquanto ela agora, já crescida, meio dormindo, meio acordada, se aprontava para o trabalho. 

Ainda sonolenta, Rita saltava sobre as poças de lama em direção à parada de ônibus, os pés molhados escorregando nas sandálias, a barra da calça ensopada dos respingos que subiam do chão às suas pernas. Equilibrava-se como podia naquela caminhada de grandes obstáculos, uma mão ocupada com a bolsa, a outra com a sombrinha vermelha de bolinhas brancas. A sombrinha já era velha desde o inverno passado, quando D. Laura enjoara dela e resolvera comprar um guarda-chuva maior. 

A bem da verdade, Rita não se agradara do presente. Mas onde já se viu recusar doação de patroa? A pessoa faz cara de feliz e agradece pela bondade de receber aquela coisa mais bonita do mundo quase sempre meio quebrada e vai-se embora sorrindo, nem que seja para abandonar numa próxima esquina. Era o que Rita deveria ter feito, porque logo na primeira chuva três aros se quebraram e a sombrinha ficou meio capenga. Ainda assim, Rita a carregava para cima e para baixo, até mesmo em dias de sol, precavida, porque o tempo podia sempre mudar, como naquela manhãzinha. 

Hoje, para completar, o vento dava uma de valente e acabou vencendo a disputa contra os aros restantes da sombrinha já tão sofrida, invertendo o arco do tecido de nylon, virando ao contrário aquilo que tornou-se definitivamente uma não-coisa de proteger da chuva, uma ilusão de não se molhar ainda mais. Na esperança de que o vento desvirasse a sombrinha, Rita conteve o ímpeto de abandonar o trambolho pelo chão e conseguiu chegar ao ponto de ônibus sem cobertura, ali se pondo à espera de destino melhor.

Quando o busú finalmente despontou na esquina, Rita ficou tão animada que foi logo se posicionando próxima à beira da calçada, esquecendo das pequenas tragédias da vida do cidadão comum. Tarde demais. A mecânica das rodas desacelerando sobre a hidráulica da falta de escoamento nas ruas da cidade resultava matematicamente no banho que Rita tomou. 

Uma senhora que também aguardava o transporte, com a devida distância, levou a mão à boca, compadecida. Um rapaz que observava a cena da janela do ônibus não conteve a cruel gargalhada. Rita, encharcada, atirou a sombrinha na calçada antes de subir no ônibus. Pagou a sua passagem e atravessou a roleta. Mirou raivosa o rapaz da gargalhada, que prontamente cedeu-lhe o assento, arrependido. Ajeitou-se na janela, de onde pôde assistir o tempo virando de novo e a metade de um arco-íris despontando no pouco horizonte do seu trajeto.


Foto:https://exame.com/mundo/aproximacao-do-tufao-dujuan-deixa-china-em-alerta-maximo/

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...