Ana Lia Almeida
Espero o elevador
me perguntando o que acabou de acontecer.
A
porta abre, eu vacilo antes de entrar. Penso em voltar, arrombar a casa, esmurrar
o professor até até tirar sangue, mostrar que sou homem. Não a bichinha que foi
embora desse apartamento de luxo com o rabo entre as pernas. Aperto o botão, me
olho no espelho: sou um nojo.
Décimo
oitavo andar. Será que eu queria, que desde sempre o desejei sem perceber? Não
pode ser. Terá sido por isso que parti de tão longe, um dia e meio dentro de um
ônibus fedido, quatro meses sem a sopa da minha mãe? Atravessei tantas
barreiras movido por um desejo oculto até mesmo de mim? Não, eu nunca quis o
professor, não desse jeito. Queria só que ele me notasse, precisava da bolsa.
Décimo sexto
andar. Estudo sem quase dormir nem comer desde que cheguei nessa porra dessa
faculdade, tentando me destacar num grupo de fluentes em inglês, espanhol e
alemão. Alguns sabem até russo, feito Pedro – o preferido do professor. Não tem
como aprender sem ler nos originais, o professor reclama com a gente, vocês
estão na melhor faculdade do país. E eu lutando pra conseguir escrever direito
em português, disfarçando meu sotaque pra parecer com eles, pra ser igual a
Pedro: andar com o professor pra cima e pra baixo, traduzir os artigos dele nas
revistas internacionais.
Décimo quinto
andar. Eu jamais serei como eles, mas o professor, mesmo assim, gostou de mim.
Décimo
quarto andar. Agora vejo porque o professor gostou de mim. Não pela minha
inteligência, não pelo meu esforço. Deve estar na minha cara. Como o professor viu
o meu fogo secreto, se minha vida é impedi-lo de se alastrar?
Décimo
terceiro. Nunca ninguém pode saber do que aconteceu agora e eu nem mesmo sei
explicar.
Décimo
segundo andar. A culpa é minha. Hoje é domingo, o que eu vim fazer na casa do
professor? Ele não tem descanso: escreve artigos, livros, viaja pelo mundo
dando palestras, entrevistas para a tevê. Sexta, no fim da aula, mostrei a ele o
rascunho do artigo. Venha na minha casa depois de amanhã. Mas depois de amanhã
é domingo, professor. Riu sacodindo os ombros, ajeitando os óculos com o dedo
indicador: você acha que aqui tem isso de domingo? De onde você é mesmo?
Os
domingos do professor não são pra acordar mais tarde e gastar o tempo no sofá
assistindo Faustão. Sentar na calçada, que nem eu, e falar mal da vida alheia
em vez de aprender alemão. Não. Domingo é pra escrever artigo, montar livro,
preparar palestra. E também para dar orientação extra para alunos na casa dele.
Décimo
andar. Tá, era um pouco suspeito.
Mas o professor
vive pra trabalhar e eu não tinha porque desconfiar de nada. Quer dizer, eu
sabia – todo mundo sabia – de umas histórias maldosas envolvendo o professor. Gente
ingrata que ele tinha ajudado e depois ficou com raiva porque não ganhou bolsa,
porque não foi para o sanduíche na Alemanha. Por sinal, a minha vez está chegando,
eu sou o próximo depois de Pedro. Já leio textos técnicos e sei o nome das
comidas – fome eu não vou passar.
Próximo semestre
é você, falta só ganhar fluência, o professor me encara com olhos cortantes logo
que chego na casa dele. Dá três tapinhas no alto das minhas costas, vem descendo
a mão; se eu não dou um passo à frente, certamente alcançaria a minha bunda.
Sétimo andar.
Puta que o pariu. Como eu sou burro, não é invenção do povo. A gente, do grupo,
é que nunca leva a sério – ou não quer acreditar. Ganhamos as bolsas, somos os coautores
dos livros, publicamos nas revistas que ele indicada, viajamos pra porra da
Alemanha pelo convênio dele. Contanto que estejamos ali para o que precisar,
que o defendamos contra as coisas que falam dele: estudante que ele passa a
mão, que ele pede boquete, que ele imprensa na parede. Mas ninguém tem coragem de
falar abertamente ou fazer uma denúncia, não passa de boatos, conversas de
corredor. E ainda tem os outros professores do grupo dizendo que é tudo
mentira, que querem destruir a carreira do nobre professor, que vão meter
processo, que basta perguntar aos orientandos – e apontam para nós: não é,
Fulano? E esse Fulano nem tem escolha, a próxima bolsa é dele.
Quinto andar. A
gente não quer ver, não pode ver. Nem mesmo quando Pedro sumiu, do nada, e
passou a vagar pela faculdade perdendo cinco quilos por semana. Falta um mês
pra viagem dele, já comprou passagem e tudo pra Berlim. Mas de uma hora pra
outra, Pedro largou o grupo de estudos. Quando a gente o avista de longe, ele
baixa a cabeça e some num corredor.
Quarto andar. O
que foi que eu fiz? Por que permiti àquelas mãos pegajosas percorrerem meu
corpo, apertarem meu pau, guiarem minha cabeça no vai-e-vem que engolia a carne
podre do professor? Vale uma bolsa, isso? Um doutorado na Alemanha? Terceiro
andar: esse professor escroto vai se foder comigo! Vou contar pra todo mundo,
isso não vai ficar assim. Segundo andar. Não conto pra ninguém. Minha mãe não
pode saber que eu sou gay, meu pai vai morrer de desgosto. Primeiro andar. Mesmo
que eu conte, ninguém vai acreditar em mim: um cara que veio lá das brenhas e não
sabe nem falar alemão.
A porta do
elevador se abre e dou de cara com Pedro.