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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

O nobre professor

 Ana Lia Almeida

 

Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.

            A porta abre, eu vacilo antes de entrar. Penso em voltar, arrombar a casa, esmurrar o professor até até tirar sangue, mostrar que sou homem. Não a bichinha que foi embora desse apartamento de luxo com o rabo entre as pernas. Aperto o botão, me olho no espelho: sou um nojo.

            Décimo oitavo andar. Será que eu queria, que desde sempre o desejei sem perceber? Não pode ser. Terá sido por isso que parti de tão longe, um dia e meio dentro de um ônibus fedido, quatro meses sem a sopa da minha mãe? Atravessei tantas barreiras movido por um desejo oculto até mesmo de mim? Não, eu nunca quis o professor, não desse jeito. Queria só que ele me notasse, precisava da bolsa.

Décimo sexto andar. Estudo sem quase dormir nem comer desde que cheguei nessa porra dessa faculdade, tentando me destacar num grupo de fluentes em inglês, espanhol e alemão. Alguns sabem até russo, feito Pedro – o preferido do professor. Não tem como aprender sem ler nos originais, o professor reclama com a gente, vocês estão na melhor faculdade do país. E eu lutando pra conseguir escrever direito em português, disfarçando meu sotaque pra parecer com eles, pra ser igual a Pedro: andar com o professor pra cima e pra baixo, traduzir os artigos dele nas revistas internacionais.

Décimo quinto andar. Eu jamais serei como eles, mas o professor, mesmo assim, gostou de mim.

            Décimo quarto andar. Agora vejo porque o professor gostou de mim. Não pela minha inteligência, não pelo meu esforço. Deve estar na minha cara. Como o professor viu o meu fogo secreto, se minha vida é impedi-lo de se alastrar?

            Décimo terceiro. Nunca ninguém pode saber do que aconteceu agora e eu nem mesmo sei explicar.

            Décimo segundo andar. A culpa é minha. Hoje é domingo, o que eu vim fazer na casa do professor? Ele não tem descanso: escreve artigos, livros, viaja pelo mundo dando palestras, entrevistas para a tevê. Sexta, no fim da aula, mostrei a ele o rascunho do artigo. Venha na minha casa depois de amanhã. Mas depois de amanhã é domingo, professor. Riu sacodindo os ombros, ajeitando os óculos com o dedo indicador: você acha que aqui tem isso de domingo? De onde você é mesmo?

            Os domingos do professor não são pra acordar mais tarde e gastar o tempo no sofá assistindo Faustão. Sentar na calçada, que nem eu, e falar mal da vida alheia em vez de aprender alemão. Não. Domingo é pra escrever artigo, montar livro, preparar palestra. E também para dar orientação extra para alunos na casa dele.

            Décimo andar. Tá, era um pouco suspeito.

Mas o professor vive pra trabalhar e eu não tinha porque desconfiar de nada. Quer dizer, eu sabia – todo mundo sabia – de umas histórias maldosas envolvendo o professor. Gente ingrata que ele tinha ajudado e depois ficou com raiva porque não ganhou bolsa, porque não foi para o sanduíche na Alemanha. Por sinal, a minha vez está chegando, eu sou o próximo depois de Pedro. Já leio textos técnicos e sei o nome das comidas – fome eu não vou passar.

Próximo semestre é você, falta só ganhar fluência, o professor me encara com olhos cortantes logo que chego na casa dele. Dá três tapinhas no alto das minhas costas, vem descendo a mão; se eu não dou um passo à frente, certamente alcançaria a minha bunda.

Sétimo andar. Puta que o pariu. Como eu sou burro, não é invenção do povo. A gente, do grupo, é que nunca leva a sério – ou não quer acreditar. Ganhamos as bolsas, somos os coautores dos livros, publicamos nas revistas que ele indicada, viajamos pra porra da Alemanha pelo convênio dele. Contanto que estejamos ali para o que precisar, que o defendamos contra as coisas que falam dele: estudante que ele passa a mão, que ele pede boquete, que ele imprensa na parede. Mas ninguém tem coragem de falar abertamente ou fazer uma denúncia, não passa de boatos, conversas de corredor. E ainda tem os outros professores do grupo dizendo que é tudo mentira, que querem destruir a carreira do nobre professor, que vão meter processo, que basta perguntar aos orientandos – e apontam para nós: não é, Fulano? E esse Fulano nem tem escolha, a próxima bolsa é dele.

Quinto andar. A gente não quer ver, não pode ver. Nem mesmo quando Pedro sumiu, do nada, e passou a vagar pela faculdade perdendo cinco quilos por semana. Falta um mês pra viagem dele, já comprou passagem e tudo pra Berlim. Mas de uma hora pra outra, Pedro largou o grupo de estudos. Quando a gente o avista de longe, ele baixa a cabeça e some num corredor.

Quarto andar. O que foi que eu fiz? Por que permiti àquelas mãos pegajosas percorrerem meu corpo, apertarem meu pau, guiarem minha cabeça no vai-e-vem que engolia a carne podre do professor? Vale uma bolsa, isso? Um doutorado na Alemanha? Terceiro andar: esse professor escroto vai se foder comigo! Vou contar pra todo mundo, isso não vai ficar assim. Segundo andar. Não conto pra ninguém. Minha mãe não pode saber que eu sou gay, meu pai vai morrer de desgosto. Primeiro andar. Mesmo que eu conte, ninguém vai acreditar em mim: um cara que veio lá das brenhas e não sabe nem falar alemão.

A porta do elevador se abre e dou de cara com Pedro.

sábado, 3 de setembro de 2022

Lançamento de "Travessia": uma novela de Ana Lia Almeida

 


Com muita alegria convido a todas e todos para o lançamento presencial do meu novo livro "Travessia", dia 10/09/22 às 17h no Bricktop´s Café.


"Travessia" é uma novela sobre os caminhos tortuosos da maternidade profunda, com seus dilemas, seus desafios e suas delícias. Integra a terceira coleção de livros de bolsa do "Mulherio das Letras", publicada pela Ed. Venas Abiertas.

Terei a honra de contar com a mediação da escritora Débora Ferraz e um punhado de bons amigos. Se você é mãe, é pai, ou simplesmente qualquer tipo de ser humano que aprecia a arte das letras, venha!

A Bricktop´s Café fica na Av. Guarabira, nº 501, Manaíra - João Pessoa/PB.

domingo, 14 de agosto de 2022

As bolsas das mulheres de Larissa Rodrigues

 

Larissa Rodrigues estreia na literatura com um romance, “O que as mulheres carregam nas bolsas” (Ed. Mondrongo, 2022). É um livro sobre sororidade, sobre a partilha de vidas atravessadas pela violência e pelas desigualdades de gênero, mas, sobretudo, uma história sobre distâncias e encontros culturais.


As protagonistas, Elisabeth e Parisa, vivenciam uma amizade posta a prova o tempo inteiro por estranhamentos recíprocos. Isto porque Parisa é uma afegã a quem se aplica, aos olhos ocidentais de Elisabeth, todos os signos da opressão que operam contra as mulheres do “oriente”. Nosso julgamento sobre Elisabeth, contudo, à medida que a trama avança, aproxima-a da amiga Parisa, com quem trabalha em um Museu. 


É nessa chave que o livro nos prende. Em meio aos acontecimentos da vida que ora distanciam, ora aproximam Parisa e Elisabeth, vamos revendo nossos estereótipos sobre a cultura oriental, sobretudo no tocante às mulheres. Na verdade, revemos a nós mesmas como mulheres assim chamadas “emancipadas” em cada encruzilhada que o machismo nos mete pelo caminho. Descobrimos, com Elisabeth, que embora o casamento de Parisa de fato se expresse a partir de convenções de gênero violentas, a personagem o tempo todo se põe em luta para escapar dos determinismos de sua cultura. De outro lado, Elisabeth se deixa aprisionar por uma relação do passado que também opera a partir de convenções machistas, porém, desiludida, acomoda-se. É por causa da amiga que se põe novamente em movimento ao solidarizar-se com a irmã e o sobrinho de Parisa, enquanto vai enfrentando seus fantasmas e tomando as rédeas da própria vida.


Em vez de enveredar-se numa tendência ensimesmada, voltando-se a questões de um “eu” aparentemente desconectado da realidade histórica, Larissa nos oferece uma narrativa de alto compromisso com o mundo, com a dimensão coletiva e social da experiência humana. Com a superação de preconceitos culturais. Com a superação da violência contra a mulher. Com a necessidade de nos comprometermos com os problemas que surgem ao nosso redor e com o enfrentamento de nossos próprios problemas. É um livro que toma partido, ao mesmo tempo em que aborda as contradições pessoais e sociais de modo nada simplista.


Que seja o primeiro de muitos. Que Larissa Rodrigues continue a sua caminhada literária nos trazendo mais e mais reflexões sobre o mundo em que vivemos e as maneiras de torná-lo um lugar melhor.










sexta-feira, 5 de agosto de 2022

As feridas abertas de “Porco de Raça”

 


“Porco de Raça”, em poucas palavras, é um livro importante. Não somente por ter ganho o prêmio Machado da DarkSide Books, tampouco pela atenção merecida que vem recebendo da crítica. Mais do que importante, é um livro necessário ao tempo em que vivemos pelas feridas purulentas que deixa sangrar.

Bruno Ribeiro, nesse romance editado pela DarkSide (2021), fabula uma distopia sobre um professor negro que é capturado para um reality show no qual é obrigado a lutar contra sujeitos considerados a escória social, sobre a rubrica de “criminosos”. Tudo isso numa cadeia de entretenimento voltado, primeiro, às elites, mas logo se expandindo rumo à popularização através do sucesso televisivo da violência. Na trama, enquanto o ritmo frenético da narrativa de Bruno vai nos tirando o fôlego, o passado do protagonista - conhecido nos ringues como Porco Sucio - descortina os caminhos atravessados pela violência racial  e de classe da sociedade brasileira. 

Ao meu ver, “Porco de Raça” corta na carne de um Brasil ignorante de suas próprias feridas pelo menos três graves purulências. 

Primeiro, o racismo em geral. O institucional. O estrutural. O nosso. Aquele que é constitutivo da forma como se organiza o mundo e as relações sociais no Brasil. Os “criminosos” capturados, e, portanto, escravizados, que vão parar no programa de luta, estão implicados numa inescapável racialização. Tanto porque costumeiramente os negro é que são tidos por “bandidos”, como porque uma das marcas dos processos de racialização é a comparação com a “natureza”. O negro, assim, é sempre animalizado, bestializado, e no livro essa etiqueta da degeneração se perfaz com o uso das máscaras de animais para esconder os rostos dos lutadores. No caso do Porco Sucio, que evidentemente não era um “criminoso”, e sim um “fracassado”, a vulnerabilidade que o levou aos ringues é compartilhada socialmente pelas pessoas negras, na vida comum desses corpos em luta constante pela sobrevivência e, como o professor protagonista, comumente “fracassam”. 

Segundo, o livro desnuda o impacto do racismo na produção da subjetividade das pessoas negras. Insegurança, sabotagem, branqueamento. O modo como o rapaz apaixonado por Wênia enxerga embate quando o que ela lhe oferece é companheirismo, porque desconfia, e desconfia porque a vida o ensinou a desconfiar, sempre. O modo como seu irmão, de outro lado, alisa desde cedo os cabelos para se branquear, e todos em sua família mimetizam o mundo dos brancos - porque é real, o mundo é mesmo dos brancos. Luta, luta, luta. Luta perdida, por todos, não só pelos negros e negras. Eu, enquanto mulher branca, aprendi. Li. Ouvi. Ecoou em minhas memórias certas situações que incompreendi ao me relacionar com pessoas negras, por carregarem um tipo de experiência social que não estava ao meu alcance. Intelectuais como Franz Fanon e Lélia Gonzalez já haviam me explicado, mas com Bruno aprendi um pouco mais, de outro jeito.

Três: os rumos da produção da violência no Brasil e no mundo. Nessa distopia muitíssimo plausível de Bruno, lemos o Brasil que bate à nossa porta e estamos, muitos de nós, deixando entrar. O Brasil que vê crescer os clubes de tiros. O país dos grupos de extermínio. A audiência dos programas policialescos de todos os dias, xingando o povo preto pobre de bandido e perguntando cadê os direitos humanos. O cara que invade a festa e mata o aniversariante por discordar de suas opções políticas. Quem tem coragem de apostar com Bruno que, por esses dias, não saiam por aí catando os pretos pobres, metam-lhes máscaras de bicho e os joguem num ringue para lutar uns contra os outros, arrodeados de câmeras?

Nos cabe mesmo, lutar. Com a força de nossas palavras. Com o exemplo de nossas atitudes. Com o nosso voto, esse ano. Para que não termine se impondo essa tragédia anunciada por Bruno Ribeiro nas linhas de “Porco de Raça”.    


sábado, 4 de junho de 2022

RITA NA LUTA - O espetinho de Rita

 

Digaí, comadre, vai querer de quê hoje?

Manda dois de frango e um queijo assado, Ritinha, pra começar. Quero uma gelada também, que dia de sexta a gente fica animada!

Taci batia ponto no espetinho de Rita toda sexta no finalzinho da tarde. Descia do ônibus, voltando do trabalho, e já ficava por lá. Às vezes chegava mais cedo e ajudava a montar o carrinho, agrupando os espetos de acordo com o sabor ao lado da brasa: carne, frango, queijo, coração de galinha e até camarão. Taci deu a maior força para abrir o Espetinho de Rita. Com aquele jeitinho de quem não queria se meter, se metendo, fez a cabeça da amiga para que ela desistisse de emprestar dinheiro a Paulão Olhos Azuis, e aplicasse num negócio próprio. Ainda bem. O espetinho era um sucesso, todo mundo já descia do ponto sentindo aquele cheirinho bom, não tinha como resistir. Só quem não gostou foi o traste do Paulão, que foi-se embora de novo; mas dessa vez, Rita nem ligou. 

No começo, ficou com medo de sentir falta das amizades no busú. Mas logo viu que ali, bem em frente à parada, aproveitava a companhia das pessoas do mesmo jeito. E o melhor de tudo: bem pertinho de casa. Não precisava mais acordar cedo e se arrumar correndo pra passar quase uma hora dentro do ônibus, sem contar o tempo da espera e da volta, já cansada, com as varizes doendo. 

E agora que sua filha Clarinha tinha entrado na Faculdade, era tanto passeio, um tal de levar a mãe pro cinema, pra teatro, passear no parque, com o espetinho Rita tinha o horário mais flexível pra aproveitar a vida um pouco, também.

Além do mais, no espetinho podia ouvir as conversas dos outros por muito mais tempo, ninguém cortava uma fofoca no meio porque chegava o ponto de descer. Todo mundo sentadinho, organizado, falando da vida alheia enquanto comia um espetinho bem gostoso, com uma farofa da melhor qualidade. Assim, Rita continuava muito bem informada sobre a vizinhança. Ela nem precisava mais fingir que não estava ouvindo, porque a turma já chegava contando as coisas pra ela ouvir, mesmo.  

Levou os espetinhos de Taci e sentou-se um pouco com ela. Contou da viagem que ia fazer com Maria Clara, usando o dinheiro das horas-extras de dona Laura. As passagens já estavam compradas. De repente, chegou um monte de gente atrás de espetinho, e Rita foi atender, toda animada. 


Foto: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/venda-de-churrasquinho-de-rua-e-autorizada-por-lei-no-rio.html

domingo, 15 de maio de 2022

RITA NA LUTA - Olhos Azuis




Faça isso não, Rita mulher. Abre esses olhos. Tu não acha estranho essa bença aparecer logo agora? Uma luta danada pra tu ganhar esse dinheiro, quase perde esses anos todos de serviço, pra agora vir me dizer que vai dar tudo de mão beijada prum sujeito que reapareceu do nada, direto das cinzas do passado, justamente agora? Taci tinha razão. Rita meditava sobre as palavras dela enquanto observava pela janela do ônibus aqueles montes de carros parados no trânsito da manhã. 

Já estava a caminho do banco para sacar o dinheiro que Paulão pedira depois de quinze anos de sumiço. Seus olhos azuis ainda a enfeitiçavam, como na primeira vez que se viram. Desde então, Rita permitiu que a vida virasse uma grande bagunça. Paulão praticamente se mudou para a casa dela, e de repente ganhou uma espécie de marido-filho. Rita levantava cedo, fazia o café, acordava Paulão com cosquinhas. Os dois riam, ela saía para trabalhar e ele ficava em casa sem fazer nada. Rita não ligava, no começo. Mas Clarinha começou a reclamar que não tinha sossego para estudar, que o homem passava o dia assistindo televisão no volume máximo e andava o dia todo só de cueca pela casa. Depois disso, não deu nem um mês, ele sumiu. Escafedeu-se. Clarinha acendeu velas e pagou promessas. Rita, contudo, esperava por ele toda chorosa pelos cantos.

Depois de quinze anos sem dar notícias, Paulão reaparecia exatamente na semana em que a Justiça liberava o FGTS, as horas-extras e as férias atrasadas de Rita, após ser inocentada no processo criminal da morte de dona Laura. Doutor Felipo, o advogado que Taci arranjou, tinha acabado de explicar tudo bem direitinho ao telefone quando Paulão bateu na casa dela. Ô de casa. Rita ficou branca, azul e amarela, parecia ter visto um fantasma diante do homem que jamais esquecera. Ele veio com uma história de que tinha saído às pressas, fugindo de uma dívida que vieram cobrar, e de tanta vergonha, afinal, o que Rita pensaria dele, achou melhor desaparecer. Que nunca deixara de pensar nela e finalmente resolvera voltar. A dívida, porém, continuava, e havia crescido. Ele resolvera ter coragem, desta vez, para pedir-lhe o dinheiro emprestado.

E precisa de coragem pra isso? Taci questionava, indignada; quanto mais detalhes Rita contava, mais a história parecia uma grande furada. Rita, Rita… olhe, eu não vou nem dizer mais nada. Vou-me embora que a minha parada é a próxima.


Foto: https://lenscope.com.br/blog/olho-azul/ 

sábado, 5 de março de 2022

A teimosia de dona Laura

 

  
 

Rita mal percebia as ruas desertas ficando pra trás pela janela do ônibus vazio. Era tarde da noite. Seus olhos imóveis reviam, uma por uma, as mais terríveis memórias daquele dia. Era tarde. Tarde demais para que dona Laura lhe desse ouvidos. Rita limparia, sim, o armário da cozinha, mas o banquinho de plástico não podia com ela, muito menos com a patroa. Peraí, dona Laura, eu vou pedir a escada do vizinho emprestada. Suba não, dona Laura, esse banquinho não pode com a senho…

Tarde demais. O banco quebrando, dona Laura caindo, a cabeça dela batendo na quina da mesa, seu sangue escorrendo pelo chão da cozinha, sua vida se esvaindo sob os pés de Rita. Por três segundos, Rita não soube o que fazer. Não acreditou logo no que acontecera, como se de repente estivessem, ela e a patroa, dentro de uma cena de novela. Sangue, sangue, sangue. Rita não suportava ver sangue, a ponto de desmaiar. Depois de três segundos, contudo, deu-se conta de que não poderia desmaiar. 

Correria gritando socorro, tocaria freneticamente as campainhas dos vizinhos que não se dariam ao trabalho de atender tão imediatamente, no tempo de uma vida se acabando, ao chamado desesperado de uma campainha. Rita deixaria dona Laura morrendo, desceria as escadas e bateria nas portas do andar de baixo e de cima. As gentes dali não gostam de ser incomodadas. As gentes dali gostaram apenas de lamentar, do alto das janelas de seus apartamentos, quando a ambulância chegou e levou dona Laura já sem vida para o hospital. 

Era tarde quando liberaram o corpo de dona Laura do IML, resolvendo se havia algo a ser investigado naquela morte estúpida. Rita numa delegacia, sem entender direito porque não queriam que ela fosse ao velório. Eu mesma não quis subir, seu Delegado, avisei que o banquinho não podia com ela, mas ela teimou. Quando eu vi, já era tarde.

Que alertou a vítima de que o móvel de plástico não suportaria o peso, no que foi desconsiderada. Que estava na iminência de ir buscar uma escada emprestada quando a vítima se acidentou. Que se ausentou do local do acidente em busca de auxílio, sem, contudo, ter logrado êxito. Que telefonou ao filho da vítima, responsável por ter chamado a ambulância. Que, quando do socorro médico, a fatalidade já havia se tornado irreversível. Ao ser perguntada se teria alguma desavença com a vítima, a depoente negou. Ao ser questionada se a vítima pagava o seu salário em dia, a depoente respondeu que sim. Ao ser perquirida se a vítima lhe devia algum dinheiro, a depoente declarou que não.  Ao ser perguntada se considerava a vítima uma boa patroa, a depoente respondeu afirmativamente.

Era muito tarde quando Rita foi liberada da delegacia, sem compreender o porquê de tantas perguntas. Quando o patrão recusou seu telefonema querendo saber onde dona Laura havia sido enterrada. Quando esperou mais de quarenta minutos pelo último ônibus em frente à Central de Polícia. Quando sentou-se à janela, com seu olhar perdido revendo o corpo ensanguentado de dona Laura. O banquinho não pôde com ela. Já era tarde. 


Foto: https://noticias.r7.com/cidades/mulheres-pressionam-por-criacao-de-lei-federal-para-que-possam-descer-do-onibus-fora-do-ponto-depois-das-22h-21012016

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...