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sábado, 5 de março de 2022

A teimosia de dona Laura

 

  
 

Rita mal percebia as ruas desertas ficando pra trás pela janela do ônibus vazio. Era tarde da noite. Seus olhos imóveis reviam, uma por uma, as mais terríveis memórias daquele dia. Era tarde. Tarde demais para que dona Laura lhe desse ouvidos. Rita limparia, sim, o armário da cozinha, mas o banquinho de plástico não podia com ela, muito menos com a patroa. Peraí, dona Laura, eu vou pedir a escada do vizinho emprestada. Suba não, dona Laura, esse banquinho não pode com a senho…

Tarde demais. O banco quebrando, dona Laura caindo, a cabeça dela batendo na quina da mesa, seu sangue escorrendo pelo chão da cozinha, sua vida se esvaindo sob os pés de Rita. Por três segundos, Rita não soube o que fazer. Não acreditou logo no que acontecera, como se de repente estivessem, ela e a patroa, dentro de uma cena de novela. Sangue, sangue, sangue. Rita não suportava ver sangue, a ponto de desmaiar. Depois de três segundos, contudo, deu-se conta de que não poderia desmaiar. 

Correria gritando socorro, tocaria freneticamente as campainhas dos vizinhos que não se dariam ao trabalho de atender tão imediatamente, no tempo de uma vida se acabando, ao chamado desesperado de uma campainha. Rita deixaria dona Laura morrendo, desceria as escadas e bateria nas portas do andar de baixo e de cima. As gentes dali não gostam de ser incomodadas. As gentes dali gostaram apenas de lamentar, do alto das janelas de seus apartamentos, quando a ambulância chegou e levou dona Laura já sem vida para o hospital. 

Era tarde quando liberaram o corpo de dona Laura do IML, resolvendo se havia algo a ser investigado naquela morte estúpida. Rita numa delegacia, sem entender direito porque não queriam que ela fosse ao velório. Eu mesma não quis subir, seu Delegado, avisei que o banquinho não podia com ela, mas ela teimou. Quando eu vi, já era tarde.

Que alertou a vítima de que o móvel de plástico não suportaria o peso, no que foi desconsiderada. Que estava na iminência de ir buscar uma escada emprestada quando a vítima se acidentou. Que se ausentou do local do acidente em busca de auxílio, sem, contudo, ter logrado êxito. Que telefonou ao filho da vítima, responsável por ter chamado a ambulância. Que, quando do socorro médico, a fatalidade já havia se tornado irreversível. Ao ser perguntada se teria alguma desavença com a vítima, a depoente negou. Ao ser questionada se a vítima pagava o seu salário em dia, a depoente respondeu que sim. Ao ser perquirida se a vítima lhe devia algum dinheiro, a depoente declarou que não.  Ao ser perguntada se considerava a vítima uma boa patroa, a depoente respondeu afirmativamente.

Era muito tarde quando Rita foi liberada da delegacia, sem compreender o porquê de tantas perguntas. Quando o patrão recusou seu telefonema querendo saber onde dona Laura havia sido enterrada. Quando esperou mais de quarenta minutos pelo último ônibus em frente à Central de Polícia. Quando sentou-se à janela, com seu olhar perdido revendo o corpo ensanguentado de dona Laura. O banquinho não pôde com ela. Já era tarde. 


Foto: https://noticias.r7.com/cidades/mulheres-pressionam-por-criacao-de-lei-federal-para-que-possam-descer-do-onibus-fora-do-ponto-depois-das-22h-21012016

2 comentários:

  1. Pobre, dona Laura. Tão rica, tao chique, morrer assim tão deselegante. A morte não se ocupa com charme. Vem sempre com rudeza, muito bom o texto.
    Faltava a tragédia efetiva, na vida de Rita. Perder o emprego, de um jeito assim, cheio de sangue, quem sabe agora, Rita encontra um nova oportunidade de sobrevivência, mais perto de casa. Talvez, menos tempo dentro de busu.quem sabe do Futuro de Rita. Uma pena, esse dia tão
    Agoniado, na vida de Rita.

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  2. Meus pêsames pra Rita pq a doméstica passa mais tempo com a patroa do que a família e se sente como se fizesse parte dela.pra d. Laura descanso eterno

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