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domingo, 31 de maio de 2020

CURTINHAS DA QUARENTENA - Décima segunda

Eis uma das maiores esquisitices da quarentena: a tal da festa on line. Você combina tudo, faz os convites e manda o link. Os preparativos não requerem muitos esforços, basta uma taça de vinho, duas ou três cervejas, um aperitivozinho e pronto. Econômica. 

Será que eles vêm? Pensando se valia mesmo à pena, você deixou tudo pra última hora, talvez não consigam se programar. Já tinha ensaiado mil vezes: qualquer dia desses vamos marcar um vinhozinho pela internet; está certo, vamos marcar, e nada. É hoje que faço uma noitada remota! Vamos ver o sol raiar cada um da janela de sua casa, com certeza vai ser a coisa mais animada de todo o período do isolamento social, um verdadeiro estouro. 

Chegou a hora, a turma já está entrando na sala virtual. Boa noite, parabéns, feliz aniversário. Obrigada, peraí que tô botando o pessoal pra dentro da sala. Gente, essa aqui é minha irmã que mora em Campina Grande, essa outra é minha amiga de São Paulo, chegou também minha prima de Nova Iorque e meus outros primos da Itália. Chique, evento internacional. 

Esperando sua vez de falar, vai ficando todo mundo meio calado. Alguém rompe o silêncio e domina a teleconferência festiva por quinze minutos. Enfadados, alguns desligam a câmera e o microfone pra espiar a live daquela cantora animada. Outros aproveitam para ir no banheiro sem pedir licença. Meu Deus, por quê as pessoas não conversam? Já chega, vamos cantar os parabéns. 

Uma hora depois, a chamada de vídeo estava encerrada. Fulana não veio porque a internet caiu. Beltrano tinha outro compromisso a distância no mesmo horário. Sicrana confessou que achava chato, não ia e acabou a história.

(Uma rápida homenagem ao meu aniversário de 32 anos)

sexta-feira, 29 de maio de 2020

CURTINHAS DA QUARENTENA- Décima Primeira


O fenômeno dos dias perdidos certamente já existia antes da pandemia. Saía-se de casa sem conseguir tomar café sabe-se lá porque; chegava-se no trabalho e simplesmente nada se resolvia nos dois turnos inteiros. Para ver se algo dava certo no dia, ia-se ao cinema para finalmente assistir aquele filme tão comentado pela crítica e quando pensava-se que não, a sessão era cancelada sem maiores explicações. 

Pois bem. Agora os dias perdidos se passam integralmente dentro de casa. A manhã se gasta na expectativa da internet segurar para a aula on line da menina. Quando você vê, chegou a correria do almoço. O feijão queima, o arroz fica sem sal, a mistura estragou de tanto requentado. 

À tarde você faz o café e se senta para trabalhar. Nesse exato momento a campainha toca: é aquela feira que você conseguiu terceirizar para evitar o mercado. Lá se vão quarenta minutos de álcool em gel e água sanitária, produto por produto, até que você volte ao computador.

Em frente à tela bate aquele soninho da tarde. Lutando contra ele, você se lembra da arma imbatível que garantirá meia tarde inteira de trabalho ultra-produtivo: o café! Qual não é a decepção ao provar que ele está frio como uma sobremesa...

Indefeso, você resolve cochilar ali mesmo, sentado, somente quinze minutos, até se restabelecer. Acorda uma hora inteira depois, e adivinhem? Já é hora de preparar o jantar. Você já havia negado o lanche à menina três vezes tentando se concentrar, e agora a refeição torna-se inadiável. 

Após a lavagem dos pratos, você ainda não  se dá por vencido. Tenta assistir um filme, que evidentemente não presta, desiste pela metade e finalmente vai dormir sonhando com um amanhã que não seja outro desses dias perdidos.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

CURTINHAS DA QUARENTENA - Décima

Infiltrações. Entupimentos. Peste de cupins. Colônias de mofo. Greves de eletrodomésticos. Na falta de encanadores, eletricistas, marceneiros, dedetizadores, o repertório infinito das dificuldades domésticas apresenta cenas das mais dramáticas. 


Aquela estante despencando sem aviso prévio, deixando seus livros preferidos arreganhados pelo chão. Aquela família de ratinhos que você descobriu morar dentro do forno. Aquele varal que partiu, derrubando seus lençóis ainda molhados na lavanderia. O cachorrinho comendo o carregador do seu notebook.  


Tão logo o sujeito se depare com a coisa quebrada ou a situação a ser resolvida, verá irromper o grande portal que o conduz à dimensão paralela dos pequenos desastres domésticos. Vai atravessá-lo e pronto! A manhã toda já terá se passado,  o restante do dia estará perdido e nada mais restará a não ser torcer para que o dia seguinte seja melhor.


terça-feira, 19 de maio de 2020

CURTINHAS DA QUARENTENA - Aula on line

A criança pula da cama faltando 5 minutos para a aula começar, troca a camisa do pijama e corre pra frente do computador, depois de uma noite de pesadelos por causa do Jornal. Pelo menos a câmera poderá ficar desligada caso o cabelo amanheça irremediavelmente assanhado. Com sorte, a internet da professora estará boa, vamos aguardar todo mundo entrar na sala virtual. E cadê Fulaninho que ainda não chegou? Peraí que a professora vai ver se a mãe dele disse alguma coisa lá no grupo de whatsaap. Antes do início da aula, já se passaram 3 rixas na modalidade chat e 5 guerras de desligamento de microfones. Chegou Fulaninho, bom dia, fez a tarefa? Como assim a sua mãe não lembrava desse assunto, Fulaninho, a gente não passou a manhã todinha aprendendo isso ontem? Como é, Cicraninha? Seu pai trabalhou no computador a tarde toda e por isso você não pôde fazer a tarefa, entendi. No meio da aula on line, a criança se aborrece com a coleguinha e abandona a turma. Deixa a professora-computador falando sozinha e vai reclamar para a mãe que odeia todo mundo, que nunca mais vai voltar pra essa escola; a propósito, será que agora ela já pode ir pra casa da prima? Deixemos para a posteridade as avaliações sobre o tal do ensino remoto. Por hora, basta narrar.    


domingo, 17 de maio de 2020

CURTINHAS DA QUARENTENA - Oitava

Tem os atletas da quarentena. Entre flexões e piruetas, elevam a faxina diária a um exercício de alto potencial aeróbico. Ao varrer a casa, vão alongando braços e pernas para em seguida entrar com os polichinelos. Limpam o banheiro entre séries de agachamento. Um, dois; escova o vaso; um, dois, esfrega a pia. Pega o desinfetante, joga a água sanitária, vamos lá, pessoal! Eles lavam os pratos na ponta dos pés, malhando, assim, as panturrilhas. Tenho uma prima que desce e sobre todos os dias os 6 lances da escada que separam a sua casa do chão, para depois arrodear correndo a garagem do edifício incontáveis vezes. Tudo isso fora a faxina, podem acreditar. Dia desses ela caiu de bunda no chão e ficou três dias sem sentar direito por causa de uma dessas peripécias. Os isolados atletas não conhecem limites. Meu primo capoeirista quase quebra o braço jogando o dia inteiro dentro do apartamento. Calculou mal a meia-lua de frente, bateu na mesinha de centro, desequilibrou e caiu por cima do braço esquerdo. Eu os admiro. Admito sentir uma pontadinha de inveja: suados, se libertam um pouco das suas dores. 

(para Ravina e Lennon)


CURTINHAS DA QUARENTENA - Sétima

Saudade dos Outros. Almoçar na casa dos Outros. Ver os Outros passando na rua. Se imprensar com os Outros no meio da multidão. Dia desse a bateria do carro descarregou, por falta de estrada. Qual não foi a alegria quando o rapaz do seguro chegou: tratado como uma visita das mais importantes, guardados os tais dois metros de distância e respeitadas as máscaras, claro. Aceitou todo contente o copo d’água, o cafezinho e a rapadura. Foi o grande acontecimento da semana! Um tipo de carência parecida levou minha mãe a abrir o portão pra ver se a rua ainda estava lá. Leva minha filha todos os dias à aula remota só pra ver a cara das amiguinhas dela. A falta dos Outros faz a minha sobrinha de três meses com certeza achar que a gente daqui de casa é um tipo esquisito com forma de celular: um povo que acende, conversa, depois fica lá parado em cima do sofá. Esses Outros Remotos, os Outros à Distância, jamais serão como os Outros de verdade.

CURTINHAS DA QUARENTENA - Sexta

Circulou no WhatsApp um vídeo engraçadinho, desses que nos aliviam da tragédia atual. Nele, um jovem senhor compara o coronavírus ao Ricardão. “Se você ficar em casa, ele não vem!”, eis a mensagem, recado ou alerta.
Reconhecendo o genial incentivo popular ao isolamento social, devo trazer alguns elementos para enriquecer o debate. Trata-se das tão faladas ferramentas digitais, que hoje possibilitam de um tudo. Videoconferências reúnem dezenas de pessoas para o trabalho ou para uma festa de aniversário; plataformas digitais realizam desde plenárias do Congresso Nacional até sessões de terapia; mesmo os protestos estão hoje acontecendo por meio de lives do YouTube.
Então, o que dizer do preocupante chifre digital ou a distância? Certamente continua sendo algo que o sujeito coloca na própria cabeça, mas, em tempos de fragilidade emocional e ansiedade generalizada, a questão merece ser discutida com cuidado. Em analogia ao difundido jargão dos anos 90, “selinho não é gaia”, com muito mais razão podemos amenizar o sofrimento daqueles que enfrentam este problema.

Se estas linhas foram escritas para você, recomendo que tenha calma, deixe a questão um pouco de lado e aguarde a quarentena passar. Postergue. Depois disso, caso a situação persista e evolua para a modalidade presencial, você terá mais condições emocionais e práticas de pensar no que fazer. Saiba também que as ferramentas digitais estão à disposição para o uso de todas e todos, indiscriminadamente.

CURTINHAS DA QUARENTENA - Quinta


Tem um Normalzinho dentro de mim. Ele me cobra meus prazos, e não aceita desculpas como estar acontecendo a maior tragédia da humanidade durante a minha curta existência. Normalzinho quer que eu faça um projeto de pesquisa para segunda-feira, sem falta. Quer que eu termine aquele artigo do Congresso que foi cancelado, afinal, falta tão pouco, ainda podia rolar uma publicação numa revista Qualis A1 nesses tempos em que estou parada. Ele me quer youtuber, editando vídeo-aulas mirabolantes. Vive me dizendo que estou feia, passando na cara as muitas gentes por aí que pintam o cabelo e são os atletas da quarentena.  Normalzinho quer respostas: até quando? Como? Por quê não? Eu o expulso de mim, mas ele volta e muitas vezes me derrota.

CURTINHAS DA QUARENTENA - Quarta

Sabe os Normais da quarentena? Quero distância deles. Estão achando que o certo mesmo é manter os antigos padrões daquela vida sufocante e sem propósito que todo mundo já vivia… Ai, ai. Eu que não quero voltar praquele mundo fútil, cheio de exploração e miséria. Os Normais pensam que a economia não pode parar, sem nunca ter refletido sobre a enorme inutilidade entre tudo aquilo que é produzido. Acham que as crianças não podem parar de “aprender”, sem nunca ter pensado seriamente sobre o modelo de sociedade que esse aprendizado sustenta. Mal podem esperar o isolamento terminar para voltar para suas vidas vazias de sentido, os Normais.

CURTINHAS DA QUARENTENA - Terceira

Talvez o conceito de "altos e baixos" mereça uma revisão nesses tempos de isolamento: a parte do "alto" pode ser traduzida por "não estar muito pra baixo", e as escalas dos baixos podem ser ampliadas até o sentido de "queda livre sem a perspectiva de encontrar o chão". Como quando o café acabou e você pensa nas máscaras que não estão usando no supermercado. Ou quando o mês acabou e você não se lembra dele ter passado. Ou quando você  sabe que não tem do que reclamar, com tantas coisas piores acontecendo com tantas outras pessoas.

CURTINHAS DA QUARENTENA - Segunda


Não são apenas as pessoas que estão perdendo o juízo nessa quarentena: os cachorros também. A maior convivência com seus melhores amigos pode deixá-los confusos e irremediavelmente dependentes. Pelo menos é o que está acontecendo por aqui com Choquita e seu filhote Choquito, desde que a pequena Anita, melhor amiga deles, foi passar uns dias na casa do pai. Os cães estão seriamente preocupados e a procuram pela casa toda, apreensivos. Devem pensar que demos sumiço nela como fizemos com os outros três filhotes, levados não sabem para onde, de uma hora pra outra. Nos olham de um jeito acusatório como se dissessem: “O que vocês fizeram com ela? Onde a esconderam?” Realmente, não está fácil pra ninguém.

CURTINHAS DA QUARENTENA - Primeira


Tem muita gente por aí sozinha em casa nessa quarentena se recusando a perder o charme! Minha prima, por exemplo, dia desse contou que fez um jantarzinho especial para si própria. Perfumou-se, passou batom e escovou o cabelo. O cardápio foi escolhida após um pequeno campeonato dentro das páginas do livro de receitas: carne na cerveja. Saída do forno, estava divina! No dia seguinte, continuava uma delícia. Na terceira requentada, o seu maior desejo era uma companhia qualquer que evitasse guardar mais aquela sobra na geladeira. No quarto dia, o cachorro foi o ser vivo mais feliz da pandemia.

(Para Sandrinha)

O nobre professor

  Ana Lia Almeida   Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.             A porta abre, eu vacilo antes de entrar. P...